17 de abril de 2018

A Rota Empreendedora



A lágrima deslizou com a mesma fluidez com que o lápis deslizava no papel cenário. Estatelou-se na folha e deixou uma mancha arredondada que Mariana Calaça Baptista contemplou durante longos instantes. Quando escreveu o seu nome no workshop de teatro, Mariana esperava um dia agradável na vila de Óbidos. Momentos de descontração, novas experiências. Não esperava uma catarse. E muito menos que essa enxurrada emocional semeasse e regasse uma amizade que se viria a transformar num projeto de vida.

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A instrutora tinha-lhe pedido que desenhasse, detalhadamente, os hábitos e percursos do seu dia-a-dia. Traço a traço, Mariana acabara de constatar que nos últimos cinco anos os seus dias tinham sido todos iguais. De 2010 a 2015, geriu um hotel onde trabalhava sete dias por semana e vivia como residente permanente. Levantava-se de manhã cedo, recebia os hóspedes, “good morning sir”, servia o pequeno-almoço, coordenava os trabalhos nos jardins, fazia as compras no supermercado, fazia o check out dos hóspedes, “Goodbye sir, hope to see you soon”, fazia as camas, administrava a faturação e as finanças, geria o relacionamento com os clientes nas redes sociais. De sol a sol, de segunda a domingo. 
A sua polivalência dava resultados e estes orgulhavam-na. Impulsionavam-na. Mas, a cada passo íngreme dessa subida, Mariana dava conta do preço. “Levei esse Turismo de Habitação aos mais altos rankings da Booking e Trip Advisor, situação que é mais facilitada quando é apenas uma pessoa que dá a cara por um front office, no entanto o custo pessoal e familiar é altíssimo”. 
Em Janeiro de 2015, quando o proprietário lhe propôs renovar por mais cinco anos, Mariana não hesitou. Sorriu e disse não. “Ora eu, nessa altura com 36 anos, fiz as contas e não quis sair de lá com 41 anos, altura em que não teria certamente tanta energia para começar um projeto meu”. 
Ainda nesse mês, Mariana abraça um conjunto de atividades, incluindo um workshop denominado “Experimenta Teatro”.


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A primeira performance passou despercebida. A segunda, intrigou-a. À terceira, Inês constatou que algo se passava. Inês Fouto, uma engenheira do ambiente há muito transformada em atriz, já estava habituada a estas lides. Fez filmes, entrou em peças de teatro, criou a Cenas Teatro e Companhia, “uma companhia de Teatro que cria, constrói e desenvolve projetos na área da Educação e da Comunidade”. E é professora de teatro. Nesta aula, o exercício de uma das alunas captou-lhe a atenção. Era diferente de todos os outros. O exercício, a reação da aluna, o impacto na instrutora. “Foi uma performance muito forte para mim também, pois foi muito genuína, de tal forma que ainda me lembro dela. E claro que para a Mariana também foi. Os gestos e sorrisos mecânicos; ela percebeu que não queria mais ser escrava desse trabalho e que a sua liberdade valia muito mais”, relembra Inês. “O teatro é isso, verdade a partir da história de cada um. Depois podemos inventar, mas a raiz tem de ir buscar alimento à fonte e a fonte são as nossas experiências, as nossas vivências”, complementa.
  
Foto: Luis Dias

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A passagem do tempo não as afastou. Mantiveram contacto, tornaram-se próximas, “como duas crianças que encontram um amigo de verdade”, diz Inês. 
Durante um café em finais de 2015, Mariana conheceu mais em detalhe os inúmeros projetos de teatro de Inês que, por sua vez, tomou conhecimento da apetência de Mariana para gerar e rentabilizar parcerias. Mariana estava, inclusivamente, a tirar um mestrado em gestão cultural. A questão era inevitável e soltou-se com naturalidade: “Ouve lá, bora fazer algo juntas!”. Mariana entusiasmou-se com o desafio de Inês. Debateram possibilidades. Negócios de índole cultural, peças de teatro, até novelas. “Andámos às voltas a pensar como faríamos isto de juntar teatro e património e lembrámos-nos de Bordallo Pinheiro. Estamos nas Caldas da Rainha, a cidade do mestre, temos a Rota Bordaliana, a Fábrica de Faianças, as ruas, a cidade, a praça da fruta, porque não falar dele?”, questionou Mariana.
“O homem dos sete ofícios!”, exclamou Inês. A atriz gosta particularmente dessa faceta, até porque nunca soube responder quando lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande. “Tudo o queria ser nunca coube numa palavra, ou duas, ou três, talvez porque nunca me consegui definir numa coisa só”. Inês identifica-se com essa natureza multifacetada de Rafael Bordalo Pinheiro (foi ilustrador, pintor, decorador, caricaturista político e social, jornalista, professor e ceramista) e rouba um poema a um heterónimo de Fernando Pessoa, Ricardo Reis, para a exprimir:

“Para ser grande, sê inteiro: nada 
Teu exagera ou exclui. 
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive”.


O heterónimo inspirou a dupla num outro desafio. Bordalo Pinheiro já é sobejamente conhecido, tal como a sua associação às Caldas. Era preciso um ângulo diferente. “Vamos usar os alter egos”.
E assim começou a ser desenhado Alter Egos de Bordallo, um percurso teatralizado, onde a história da cidade se interliga com as vivências de Rafael Bordalo Pinheiro. “Uma visita guiada à cidade bordaliana do século XIX, onde se poderá conhecer de perto o património, a arquitectura, as artes decorativas, a gastronomia, a fábrica de faianças e a única e exclusiva Rota Bordaliana”, evoca Mariana. Durante o percurso, o público é surpreendido por personagens. Os célebres alter egos do artista. 

Após vasta pesquisa e aconselhamento, optaram por três: A Maria dos Pontos nos I`ss (personagem contestatária de Bordalo), A Marquesa Miss Stela (amiga íntima de Bordalo que esconde alguns segredos) e o Gato Pires, o adorado animal de estimação de Bordalo, presente em tantas das suas ilustrações e cerâmicas, muitas vezes com cartola e monóculo, à imagem do dono. “Ele tinha uma adoração especial por gatos”, informa Inês, acrescentando que o próprio Bordalo acreditava ter sido gato numa outra vida. “Um tinha sete vidas, o outro sete ofícios”, refere, sorridente.



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O Plano estava traçado. “E agora, como vamos pôr isto na rua?”. Mariana e Inês optaram por criar uma base de sustentabilidade para arrancar. Organizaram um crowdfunding e aplicaram a fórmula para obter investimento que tinham aprendido numa formação de empreendedorismo. “A regra dos três F's: friends, family and fools”. Persuasivas e resilientes, desdobraram-se em contactos. Atingiram 110% do objectivo estabelecido. No Inverno de 2016, o espetáculo estava na rua. Todos os primeiros domingos de cada mês, sempre com uma multidão entusiasta atrás. “A adesão tem sido boa, positiva”, afirma Mariana. “Mas há muito esforço por trás desse resultado, levantar toda a máquina do espetáculo é complicado”, acrescenta. Para sustentar esse peso, a dupla readaptou a regra anterior e criou a máxima dos três P's. “Promoção, parcerias e patatas”. Começamos pelo último. “Toda a gente precisa de comer patatas”, refere Inês, com sotaque espanhol, aludindo à necessidade de viabilizar economicamente o projeto. 
Os outros são flagrantes. A dupla está constantemente em busca de parcerias, tendo já algumas estabelecidas com o Museu Rafael Bordalo Pinheiro de Lisboa, a Junta de Freguesia de Nossa Senhora do Populo, Couto e São Gregório, a Câmara Municipal de Caldas da Rainha, a Gazeta das Caldas ou a Rodoviária do Oeste. A promoção também é constante, desde a presença em feiras da cidade, eventos de rua ou uma particular apetência para chegar aos meios de comunicação social.

Desde que “subiram ao palco”, os Alter Egos de Bordallo apareceram nos jornais locais e foram a programas de televisão. Até protagonizaram transmissões televisivas. Numa edição do Portugal em Direto nas Caldas da Rainha, no âmbito da candidatura a Cidade Criativa da UNESCO em 2021, o travesso Gato Pires surpreendeu tudo e todos e, mesmo em frente às câmaras, saltou para cima das flores do Parque D. Carlos I. “Um pouco desorientado pela escuridão e pelas voluptuosas senhoras, enfiei-me num emaranhado de arbustos”, recitava o felino, enquanto mergulhava nos gerânios, perante o olhar surpreso e divertido de toda a comitiva e desconfiado dos jardineiros do parque.
Ninguém esqueceu esse momento, hoje recordado pelo próprio Gato. Sim, o próprio. Inês Fouto dá corpo às três personagens e apareceu caracterizada na entrevista. O rigor não se limita à caracterização. Em cada palavra que solta, Inês incorpora o papel.



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O percurso estende-se durante um quilómetro e demora cerca de 90 minutos. Inês tem três cenas em pontos diferentes do parque, três personagens, três mudanças de figurino. “Antes era uma correria”, mia o Gato Pires. Agora é uma pedalada. “Arranjamos uma bicicleta para ela se deslocar mais rápido entre cenas”, refere Mariana. 
E enquanto o Gato Pires ou a Marquesa pedalam pelos trilhos do parque, Mariana (arquiteta de formação) entretém os clientes com informações sobre o património cultural e monumental da cidade. Conta a história do parque D. Carlos I e os dois mil trabalhadores que construíram o lago, os pavilhões, os courts de ténis e todas as arborizações e caminhos “que compõe um jardim romântico do século XIX, que está à altura de uns Champs Elisées em Paris”. 
Destaca o coreto, desenhado pelo próprio Bordalo ou, claro, os famosos pavilhões que se erguem numa das extremidades do parque, majestosos, místicos, abandonados. Nas Caldas, há quem os apelide de “Hogwarts”, pelo seu estilo peculiar, que parece evocar o universo fantasioso da saga Harry Potter. 
“Foram mandados erigir por Rodrigo Maria Berquó em 1889, como expansão do complexo do Hotel Termal que então se queria tão inovador como as maiores cidades termais europeias”, informa Mariana. 
A morte prematura de Berquó interrompeu esse intento e, desde então, os edifícios já assumiram todo o tipo de desígnios, exceto o primordial. Foram sede de associações, escola profissional, redação de um jornal, biblioteca e até serviram de abrigo para refugiados da II Guerra Mundial. “Chamavam-se residências de proximidade pois o regime de Salazar podia em pequenos núcleos urbanos controlar os refugiados da guerra, sem assim nela ter de se envolver, e o controle dos refugiados foi mais fácil de executar dada a cidade de pequena dimensão que Caldas da Rainha e outras cidades Termais proporcionavam então”, elucida Mariana.



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“Sair à rua e contar as histórias que são memórias de todos nós”, mia o Gato Pires, antes de ser interrompido por um criança que, timidamente, pede para tirar uma fotografia ao seu lado. Não é a primeira. “Ninguém fica indiferente ao Gato Pires”, assegura Mariana. É ele que “quebra o gelo” com os espetadores, que os faz sorrir, que estabelece cumplicidades com a audiência. 
“Uma Maluqueira sadia”, mia o Gato, com os bigodes retorcidos a denunciar um sorriso. “A história e a cultura não estão apenas dentro de quatro portas nos museus, estão nas ruas, ao ar livre, neste parque, nestes passeios, na Praça da Fruta, são esses os nossos cenários”, conclui. “E no final, os espetadores podem fazer uma degustação dos produtos tradicionais da nossa terra”, acrescenta Mariana. “O pessoal gosta sempre de beber um copo e comer uma sopita”, complementa o Gato Pires, com o seu miado característico.


Futuramente, a dupla pretende estabelecer uma parceria com um estabelecimento de restauração local para implementar uma iniciativa gastronómica para coroar cada tour do Alter Egos de Bordallo. “Um almoço real”, afirma Mariana. Uma recreação da refeição que Bordalo Pinheiro preparou à Rainha Dona Amélia, numa visita que esta fez à Fábrica de Faiança Bordallo Pinheiro em finais do século XIX. Eiroses como entrada, caldeirada de peixe e arroz doce, tudo regado com vinho de Colares. “Numa mesinha com louça de Bordalo, fica um espanto”, assegura o Gato.


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A dupla empreendedora já planeia levar o espetáculo para outras cidades. “Está a ser negociada uma parceria com a Rodoviária do Oeste nesse sentido”, revela Mariana. “Levar a história viva das Caldas a outros lugares, potenciar a criatividade da nossa cidade noutros territórios”, complementa. 
“Quem sabe se até não faço uma performance na viagem do autocarro”, mia o Gato. “Há muitas hipóteses em cima da mesa”, diz Mariana, com um sorriso. Ambas exprimem uma vontade muito forte de preservar a cultura e a história caldense. “Temos um passado muito rico, é importante preservá-lo, reanimá-lo”, mia o Gato Pires. “E viver esta experiência criativa é uma excelente forma de preservação”, afirma Mariana. “Aqui ou lá fora”. Mariana insiste no desígnio de levar as histórias da região a outras paragens. “Cada cidadão deve ser um embaixador da sua cidade”.


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Nesta viagem incerta do empreendedorismo, ambas se revelam ambiciosas e motivadas. Mariana substitui o epíteto de “empreendedora” por “fazedora de muitas coisas”. Gere sete unidades de Alojamento Local, é responsável pelo marketing de dois restaurantes, é pivot de comunicação na ADBD Communicare para a Região Oeste, é promotora regional da Semana Internacional de Piano de Óbidos (SIPO), é guia da Versailles Foundation, onde organiza tours para os membros da Realeza das Antigas Casas Reais Europeias, tem um programa na Rádio Mais Oeste, uma crónica na Gazeta das Caldas e desenvolve projectos de turismo criativo na Associação Destino Caldas. Hoje, Mariana desdobra-se em funções, mas disse adeus aos horários rígidos, à rotina robótica que lhe estava “entranhada na alma”, à atração fatal e ilusória de uma “gaiola dourada”. Abdicou do conforto de um salário fixo no final de cada mês, mas não se revela desconfortada. “Tudo se supera. A ausência de liberdade é que não”, garante. 
“Dá é um trabalho do caraças pá”, mia o Gato.

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