O fumo escapa da chávena e espalha-se pela mesa, juntamente com o aroma a cidreira, e parece ondular com a forma vigorosa como um homem na casa dos 70 anos folheia o jornal na mesa do lado. Está ávido por notícias. Apesar da sede informativa talvez desconheça, tal como muitos outros conterrâneos, que esta rua é Património Mundial da UNESCO. E que este café se ergue nas ruínas de um dos edifícios históricos que contribuíram para isso. No entanto, não é por isso que o Café Sofia se transformou numa espécie de atração turística em Coimbra. Há uma empreendedora por trás disso.
Aguinalda Amaro tinha 18 anos quando decidiu abandonar a pacata vila de Ansião e rumar a Coimbra. Saiu do autocarro numa rua com nome de menina e aí ficou, até hoje. Trabalhou uma década num restaurante. Depois outra numa pastelaria. Até que o sexagenário Café Sofia, onde era cliente assídua, ficou disponível. Não havia nenhum letreiro com a inscrição “trespassa-se”. Foram os donos que lhe confidenciaram essa intenção, juntamente com um desejo: Adoravam que fosse ela a ficar com o espaço. Não estava nos seus planos. Era lutadora e trabalhadora, mas sobretudo uma mulher de afetos, que cumprimenta todos os conhecidos com um abraço. Decidiu então abraçar também o desafio. Há sete anos que é amiga dele. Mais do que isso.
“É uma família”, afirma Aguinalda. “Conheço todos que aqui entram pelo nome”. Já o seu, tem-se desvanecido com o tempo. Há muito que deixou de ser Aguinalda aqui dentro. Clientes e amigos, todos a conhecem, carinhosamente, por Dona Guida.
Com o seu trato pessoal, transformou o número 88 da Rua da Sofia num espaço onde reina a alegria, o convívio, a partilha. “É um café de afetos”.
Há dois anos, a Dona Guida criou um grupo no Facebook intitulado “A nossa baixa de Coimbra ... agora e sempre”. O objetivo era promover a partilha de imagens da cidade. As pessoas começaram a aderir em massa. “Publicavam várias fotos, seja do passado como do presente”. Com as fotos vinham memórias e histórias. O número de membros foi crescendo e a interatividade também. Entusiasmada, a Dona Guida resolveu organizar um jantar com membros do grupo. “Vieram 60 pessoas”. A adesão motivou outros jantares, outros convívios. Havia pessoas de 60 ou 70 anos a fazer novas amizades ou antigos colegas de universidade a voltar a cruzar caminhos. “Um senhor de Cascais veio cá de propósito e encontrou pessoas que não via há 40 anos”, refere a Dona Guida com um sorriso. Casos desses não são invulgares nestas camaradagens no Café Sofia. Alguns emocionam-na. Conta que há uma senhora septuagenária que vive na baixa que não saia de casa há cinco anos, desde a morte do marido. Estava no grupo, via as publicações diárias. Post a post, foi-se motivando. “É hoje que vou sair”, decidiu. “Veio cá, conviveu e saiu com um grande sorriso no rosto”, relembra a Dona Guida.
A proprietária passou a organizar também eventos solidários. Concertos, bailes, iniciativas temáticas. Tudo com adesões acentuadas. Até o espetáculo “Sofia Meu Amor”, organizado pela Rede Artéria (projeto do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra que visa implementar uma rede de programação cultural regional) teve a sua sede montada no andar de cima do Café Sofia.
O pulso dinamizador da Dona Guida faz o resto. Aproveita todos os momentos quotidianos do café. Entra um cliente que oferece um fotografia emoldurada da cidade. “Vou já pendurar no andar de cima”. Entram dois policias, a Dona Guida mete-se entre eles, pede para alguém registar o momento numa fotografia e faz uma publicação no grupo: “Fui detida”. Tudo é motivo para uma história, para um sorriso.
Toda esta animação e movimentação humana, aliada à personalidade calorosa sui generis da Dona Guida, começou a atrair visitantes. Aparecem pessoas com a simples vontade de conhecer o espaço e, nem que seja durante alguns minutos, fazer parte dele, do seu quotidiano, das suas idiossincrasias. “Todos vêm cá ter, mesmo sem querer”. Todos têm um elo comum. Atravessam uma rua patrimonial para cá chegar. A Dona Guida emociona-se ao falar dela. “Esta rua é o meu CV. É a minha vida”.
Confessa-se magoada com a “negligencia” que a Rua da Sofia tem sentido. “Está esquecida, feia e suja, abandonada por quem devia cuidar dela”. Após um longo suspiro, dirige um olhar esperançoso para a mesa do lado. Já não é o senhor do jornal que está lá. São duas jovens empreendedoras que querem inverter essa situação. Conheçam a sua história amanhã, em mais uma reportagem da nossa rubrica “Quero Investir no Centro”.