Uma queria ser estilista. Ou veterinária. Ou cabeleireira. Essas eram as profissões da suas bonecas Barbie preferidas. Já a outra, nasceu numa família de músicos e sonhava ser cantora. Rute Tavares, de Águeda, e Suse Duarte, de Pombal, cresceram e adotaram outros sonhos. Rute seguiu Jornalismo e Comunicação e Suse, Estudos Artísticos. Foi um mestrado em Arte e Património, na Universidade de Coimbra, que interligou os seus caminhos. Resolveram traçar um, de sentido único, para ambas. Vão dinamizar uma rua da cidade que continua desconhecida para muitos conimbricenses e portugueses, apesar de ser Património Mundial da Humanidade.
Em 1535 o rei D. João III mandou construir uma rua invulgar em Coimbra e no próprio país. Na época, a estrutura medieval urbana caracterizava-se por ruelas estreitas e becos exíguos, mas esta nova rua ia ser ampla e extensa, para albergar sete dos 27 colégios universitários que o rei queria fazer regressar a Coimbra. Pretendia transformar a antiga capital portuguesa no centro cultural e universitário nacional e esse era o primeiro passo. Batizou-a de “Sofia”, palavra que vem do grego “sophia”, que se traduz “sabedoria”. Com o passar das décadas e dos séculos, a Rua da Sofia transformou-se numa cidade universitária, percorrida por incontáveis estudantes carregados de livros provenientes de uma biblioteca famosa pelas suas relíquias literárias. Com a passagem dos séculos, muitos desses estabelecimentos de ensino foram abandonados ou convertidos a outras funções. No entanto, essa herança histórico-cultural da rua não foi esquecida. Em Junho de 2013, foi classificada como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO.
A mudez
Suse e Rute tiveram o primeiro contacto com a rua após uma sugestão da orientadora do mestrado, que lhes falou da “Rede Artéria”, um projeto cultural em rede que visa a dinamização de centros históricos de oito cidades do país – Belmonte, Coimbra, Figueira da Foz, Fundão, Guarda, Ourém, Tábua e Viseu – através da criação artística. As duas alunas integraram o projeto e entraram nos bastidores do primeiro espetáculo, “Sofia Meu Amor”, uma peça de teatro de rua em homenagem à Rua da Sofia, organizada pelos Trincheira Teatro e com sede no Café Sofia. Foi lá que ambas conheceram a Dona Guida – que apresentámos no prelúdio desta reportagem – tal como a genuína natureza da rua. Estudaram a sua conjuntura social e histórica, elaboraram uma investigação que contemplou uma série de entrevistas a agentes culturais, entidades municipais, habitantes e comerciantes locais. “Percebemos que existe uma falta de interesse generalizada pela rua que se deve, simplesmente, ao facto das pessoas não a conhecerem”, afirma Rute. “Apesar da rua integrar a lista de património da UNESCO, não há informação explícita sobre isso, nem sinalização, nem rotas, nem nada, no fundo”, complementa Suse.
Terapia da fala
Ambas decidiram inverter essa situação. Sentaram-se numa mesa do canto da faculdade e esgrimiram ideias. Após algumas horas e várias folhas rasuradas a lápis, tinham alcançado um consenso. Iam criar uma plataforma digital que resolvesse tudo isso e muito mais. Que desse a conhecer o significado histórico e patrimonial da rua, que mantivesse uma agenda cultural sobre os eventos realizados na rua, que documentasse referências bibliográficas e trabalhos académicos interdisciplinares sobre a rua. E que desse a conhecer o lado humano da rua. “Queremos criar uma ligação emocional, dar a conhecer quem vive e trabalha lá, quem passa lá os seus dias”, diz Suse.
Daí o nome que encontraram para a plataforma: ‘Enquanto a Rua Falar’. “Sentimos que todos que passam lá os seus quotidianos têm algo a dizer sobre a rua, mas não dizem, a não ser que alguém pergunte”, afirma Rute. Explica que o projeto ‘Enquanto a Rua Falar’ é uma forma de dar e amplificar essa voz. “E esta rua tem muitas coisas para dizer, muitas histórias para contar”, acrescenta Suse.
“Estes edifícios históricos, desprovidos de gente a utilizá-los diariamente, estão mortos e as visitas são quase como um luto. Para nós, as pessoas são tão importantes quando o património material”, afirma Rute. “Enquanto a rua falar, há esperança, há vida”, diz Suse.
A voz
Ambas começaram a fazer um levantamento exaustivo de informação histórica sobre a rua e um mapeamento dos edifícios existentes. Descobriram que os sete colégios que deram vida a esta rua ainda se mantêm como testemunhos atuais da história ancestral da Universidade de Coimbra: Seis colégios (Espírito Santo, Carmo, Graça, São Pedro, São Tomás e São Boaventura) e um convento (São Domingos). Hoje, esses edifícios estão convertidos ao comércio ou a outros serviços - o Café Sofia, por exemplo, integra o antigo edifício do colégio Espírito Santo - mas todos mantêm diversas heranças do seu passado.
Integrada no projeto ‘Enquanto a Rua Falar’, está a criação de uma rota turística para dar a conhecer todos esses locais históricos, cheios de marcas e cicatrizes do seu passado na Rua da Sofia.
As duas jovens já fizeram uma primeira experiência, com uma visita guiada com crianças de um infantário localizado também no edifício do antigo colégio Espírito Santo. “No final pedimos para elas fazerem desenhos que retratassem as suas visitas e foi engraçado, elas identificaram vários elementos patrimoniais, como azulejos ou claustros”, afirma Suse, sorridente.
Também aqui, a natureza humana da rua vai ter relevância. “Essas pessoas têm de estar na rota, as suas histórias e a sua emotividade, o que é uma rota turística sem emoção?”, questiona Rute. “Vamos fornecer essa emoção com as histórias reais de quem ainda vive no património”. Após um breve momento de pausa, acrescenta: “Já basta de copos de chocolate com ginja e de romantizar Coimbra através de Pedro e Inês”.
As palavras
A dupla está neste momento a planificar e orçamentar a criação do website. O logótipo, esse já está feito. “Pedimos a uma colega, Tatiana São, que também é designer e tem imenso jeito para desenhar, está sempre a criar coisas”, refere Suse, enquanto exibe, orgulhosa, o resultado final. “Foi pago com amor e carinho”, releva, a sorrir com o olhar.
Entusiasmada e motivada, a dupla tem-se desdobrado em contactos sinérgicos para enriquecer o seu projeto. Reuniram com o Turismo Centro de Portugal, com a Casa da Memória de Guimarães, com a Memoriamedia. “Reunimos, inclusivamente, com o Rui Lobo, coordenador do Mestrado Integrado de Arquitetura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, para trocar impressões e obter informações sobre o seu projeto de reconstituir em 3D as partes destruídas do Mosteiro de Santa Cruz”, refere Suse.
Inspiradas, Rute e Suse resolveram ir em busca de fotos antigas da rua. Foram à Imagoteca da Biblioteca Municipal de Coimbra e encontraram várias. Imprimiram-nas e fizeram cartazes, com as imagens de antigamente sobrepostas com o contexto atual da rua. “É interessante observar as alterações que a rua sofreu ao longo do tempo”, salienta Rute.
Nos próximos dias, vão colocar estes cartazes nas paragens de autocarro. “Aproveitar a estadia das pessoas nas paragens para as ‘obrigar’ a reparar no sítio onde estão”, diz Suse.
Confiantes na estratégia da iniciativa, a dupla já está no terreno a procurar mais imagens. Recorreram ao “epicentro da comunidade da rua”, o Café Sofia, onde vão ser organizadas tertúlias sobre o passado da rua e onde os participantes vão ser encorajados a trazer fotografias que tenham em casa, para serem digitalizadas e integrarem o projeto. Ideias e iniciativas não faltam. Só é preciso que esta rua continue a falar.