Era uma noite de Outono e a lareira já estava acesa. Os olhos castanhos da menina de oito anos estavam vidrados em cada uma das palavras do pai. “Há anos que ninguém vive lá. Dizem que acontecem lá coisas estranhas de noite. Sons de talheres a serem remexidos, pancadas nos móveis e até passos acompanhados pelo pesado bater de uma bengala no assoalho. Agora chamam-lhe a casa ensombrada”. A história causava-lhe um misto de sentimentos. Arrepios, algum entusiasmo e muito orgulho. Paula Carloto nasceu numa terra famosa pelos fenómenos estranhos. E a sua família está por trás da perpetuação dessa fama. Hoje, “Fenómenos do Entroncamento” é uma marca registada por si. Na sua loja, Casa Carloto, comercializa inúmeros artigos relativos à mais de uma centena de fenómenos registados nesta cidade, alguns testemunhados por si. Organiza frequentemente eventos dinamizados com figuração alusiva aos fenómenos, acabou de lançar um livro sobre o tema e até criou uma sinergia com músicos locais, coordenada por Pedro Dionísio (Dyonysyo), para a produção de um videoclip.
Nas suas veias fluem dois desígnios: Transformar este património imaterial numa marca nacional. E criar um hotel dos fenómenos.
O jornalista na rua do Entroncamento à qual foi atribuída o seu nome em 2002 |
Tudo começou nos anos 50. Um jornalista local, chamado Eduardo O.P. Brito, tinha uma coluna de jornal, intitulada “Cá pelo Burgo”, onde divulgava episódios insólitos que testemunhava na povoação, até então apenas conhecida pelo entroncamento de duas linhas de caminho de ferro, a Linha Norte e a Linha Beira baixa. Começou com um relato de um melro branco, cujo dono “não quis vender nem por cinco contos a um lisboeta que disputava só para si o encanto da ave e dos seus gorjeios”. Seguiram-se outros testemunhos, um carneiro com quatro cornos, uma árvore que dava cinco frutos diferentes, um feijão com mais de um metro de comprimento, uma planta que dava batatas e tomates ao mesmo tempo, um cão que falava, uma couve que dava cravos, um ovo de galinha com 800 gramas, uma raposa matreira que enganou o caçador, uma abóbora com 60 quilos, um pinto com quatro patas, uma lebre que bebia leite pelo biberão, um cacto gigante - “o mais alto da Europa” - que ainda hoje se ergue junto à casa onde o jornalista viveu (faleceu em 2009, com 97 anos).
Estes e muitos outros episódios insólitos espalharam-se por Portugal, nas páginas de jornais como o "Diário Popular", "Diário de Notícias", "O Primeiro de Janeiro" e "O Comércio do Porto", e pelo mundo, chegando aos tabloides americanos. A fama ganhou raízes e o Entroncamento tornou-se, oficialmente, “a terra dos fenómenos”.
Paula Carloto junto à antiga casa de Eduardo O. P. Brito onde ainda perdura o famoso cacto gigante |
Nessa mesma década, um comerciante local, António Carloto de Castro, decidiu homenagear todos esses relatos que se ouviam nas ruas da (então) vila e materializou-os numa coleção de copos com imagens decalcadas, que oferecia às noivas que comprassem o seu enxoval na Casa Carloto. “Já na altura ele via esta reputação como algo positivo, uma oportunidade, uma marca”. As palavras são da filha, Paula Carloto, que hoje assume as rédeas do negócio da família. Revela-se uma “apaixonada” por essa reputação que se transformou em tradição na sua terra. E torce o nariz quando alguém se refere aos “fenómenos” de forma pejorativa. “O Galo de Barcelos também era considerado uma parolice. E agora é um ícone, um símbolo nacional, faz parte da História de uma cidade e do próprio país. É a mesma coisa com os fenómenos, são uma marca indelével do Entroncamento”.
A ligação emocional de Paula a esta peculiaridade da cidade é palpável. “A vida deu-me o privilégio de nascer numa terra com tantas histórias fantásticas”, afirma, com um brilho no olhar. Não só cresceu a ouvir as histórias no seio da família, como convivia com elas a cada esquina, a cada reunião com os colegas depois da escola, a cada visita ao novo sítio misterioso de que todos falavam. Mantém uma relação de proximidade com algumas dessas histórias. Uma delas, aconteceu a uma velha amiga.
Ana Isabel Inácio tinha quatro anos quando veio viver para o Entroncamento. Corria o ano de 1952 e os seus pais montaram uma taberna, ao lado da Casa Carloto, onde serviam sandes de chouriço e cinquenta litros de vinho por dia a maquinistas e funcionários da CP. “Na altura não havia televisão, ou se faziam filhos ou se convivia na taberna”, relembra Ana Isabel. Passava as tardes a brincar por lá ou no largo em frente, com as amigas. O pai era caçador e, numa das suas caçadas em Portalegre, matou uma lebre que, descobriu depois, tinha uma cria. Meteu-a dentro da camisa e levou-a para casa. “Isabelita, tenho uma prenda para ti”. Ana Isabel deu-lhe o nome de Chica e assumiu a responsabilidade de a alimentar. A menina de 10 anos criou um biberão artesanal, com recurso a uma garrafa de gasosa e uma chupeta, e todas as tardes dava-lhe de mamar no balcão da taberna. A lebre habituou-se à rotina e começou, ela própria, a segurar o próprio biberão. “Era tão engraçado, ela abraçava a garrafa, levantava-a e bebia o leite”. A Chica dormia numa caixa de sapatos atrás do balcão e, muitas vezes, interagia com os clientes. “Parecia um gato!”. Os clientes achavam piada. “Olha-me só para isto!”, “Mais um fenómeno pá”. As expressões de espanto foram-se acumulando e o caso não demorou a chegar às manchetes do Diário Popular, Século, A Capital e Jornal de Notícias: “Uma lebre que toma leite por biberão e brinca com os fregueses da cervejaria do seu dono”. O estabelecimento tornou-se uma atração turística. “Começou a vir gente de todo o lado, até ficavam lá à espera que eu saísse da escola para me ver a brincar com a Chica”, recorda Ana Isabel.
Ana Isabel e Paula Carloto, no balcão da taberna Vila Franca, 60 anos depois |
Mas os fenómenos não pertencem só ao passado do Entroncamento. Nesta última Primavera, alguém abandonou uma pata na Praça Salgueiro Maia. Um dos comerciantes da zona trouxe ovos do seu galinheiro e deixou-os junto ao sítio onde a pata dormia. Poucos dias depois, alguém entrou a correr na loja Carloto. “Paula, tens de vir ver isto”. A proprietária nem queria acreditar nos seus olhos. “A pata tinha chocado os ovos e estava a passear pela praça com uma fila de pintainhos atrás”. Começaram a chover mensagens de WhatsApp na população e o caso chegou a redações digitais como o Entroncamento Online e o Tomar Na Rede. “Ainda hoje o povo se regozija com estas invulgaridades”, afirma Paula.
O fenómeno é intemporal. É imune às décadas e às geografias. “De Norte a Sul, todos conhecem a terra dos fenómenos. É um conceito que ultrapassou fronteiras, cruzou oceanos, chegou a outros continentes. Tornou-se um fenómeno do próprio país. Por isso, tenho a ambição que os fenómenos se tornem Património Cultural Imaterial do país”, assegura.
E Paula tem sido incansável na busca desse objetivo. Registou a marca “Fenómenos do Entroncamento” e criou uma linha diversificada de produtos alusivos, como copos, aventais, chocolates, louças, porcelanas, sabonetes, até t-shirts ou bodies para bebé com o slogan “Sou um fenómeno”. Ou em inglês. “Já eram muitos os turistas a exigir”. Estabeleceu parcerias e expandiu os produtos para fora da sua loja. Estão à venda no Museu Nacional Ferroviário, em vários restaurantes e hotéis locais e até no Convento de Cristo, em Tomar.
Decidiu também organizar uma parada anual dos Fenómenos. Inspirada na Disney, encomendou quatro enormes fatos mascote alusivos aos fenómenos a uma artesã local, Mona Martins. Um ovo, um cão, uma raposa e a incontornável lebre Chica. “O Melro branco é o próximo”, confidencia Paula.
Enquanto o evento não estreia, é frequente avistar as mascotes a passear pelo Entroncamento nas datas festivas da cidade.
Paula Carloto e Mona Martins no atelier da artesã |
Paula Carloto com a mascote da lebre Chica no interior da Casa Carloto |
Foi o caso nas filmagens do videoclip da música “Fenómenos do Entroncamento”. Durante um café, Paula lançou o desafio a Pedro Dionísio (Dyonisio): orquestrar uma sinergia com músicos locais e imortalizar essa face desta terra numa canção. Pedro abraçou o desafio. Compôs a música e realizou um videoclip arrojado, recheado de storytelling e cuja produção galvanizou a povoação durante as filmagens e fez o Entroncamento recuar sete décadas até à primeiras páginas dessa sua história. “Foi o nosso contributo para a cultura da cidade do Entroncamento”, afirmou o músico. A estreia do videoclip, no cine-teatro da cidade, coincidiu com a concretização de um outro sonho de Paula. O lançamento do seu livro, "Fenómenos do Entroncamento - A Historia das Estórias”. Viveu acompanhada por essas histórias, por isso resolveu imortalizá-las num livro. “Senti que tinha chegado o momento de prestar tributo aos fenómenos e ao povo que os criou, aos jornalistas que os divulgaram e à minha família que os perpetuou”.
No entanto, há ainda uma página por escrever nos planos de Paula. Mas essa escrita está reservada para o futuro. “Quero criar o Hotel dos Fenómenos”. Nos jardins da sua casa, que está na família há 40 anos, há um velho armazém, atulhado de antiguidades e onde vive um Citroën dos anos 50. Paula pretende reaproveitar esse espaço e convertê-lo numa unidade hoteleira, com cada quarto dedicado a um fenómeno e decorado em conformidade.
O armazém que será transformado no Hotel dos Fenómenos |
No exterior, há um vasto jardim com dois plátanos “com mais de duzentos anos”, por onde deambulam, felizes, a Kira, a Bekas, a Carlota e a Sassá, quatro cadelas que Paula resgatou de um canil. A empreendedora é “muito ligada” à causa animal - colabora com a APABA e as suas lojas apoiam o resgate de cães e gatos abandonados e a sua integração em novos ambientes – e à sustentabilidade. “Recentemente, substituímos os sacos de plástico por sacos de pano nas lojas". Esta última faceta está patente nos seus intentos. Há imensos móveis antigos que Paula pretende restaurar e utilizar na decoração do futuro hotel dos fenómenos. Junto à relva, há uma estante de madeira a ser envernizada. “Podia comprar uma nova, mas quero aquela, era do meu irmão, ainda me lembro do que estava nas suas prateleiras”. Este reaproveitamento, para além do “significado” intrínseco e da “maior quantidade de charme”, é uma opção “sustentável e ecologicamente responsável”.
O lagar, futuro salão para jantares e festas do Hotel dos Fenómenos |
Já com esse objetivo em vista, num velho e amplo lagar da propriedade, há balcões antigos das lojas, armários envidraçados, aparadores, cadeiras e sofás, tudo a aguardar restauro. Paula tem planos muito específicos para esse espaço. Imagina-o não só como uma área de apoio ao hotel, como um salão para festas temáticas e jantares dos fenómenos. “Um espaço divertido e com muita carga histórica, que reproduza por imagens, palavras e sensações a época de 50/60 do século passado”. Sente-se o seu entusiasmo quando fala destes planos. Reabrem-se os olhos de menina fascinada com o vislumbre futuro de animados serões de Verão, com as portadas abertas para o jardim, o som do piano ou do violino misturado com o sabor do vinho, as paredes recheadas com livros de antigamente e as conversas e os debates a propagarem-se pela noite.
Consciente que este próximo passo envolve um investimento “volumoso e ambicioso”, a empreendedora mostra-se resiliente e confiante. “É uma história em construção”, afirma, com um sorriso cúmplice. Paula viveu rodeada de histórias e adora continuar a senti-las perto de si. “O meu passado é giro, dá-me gozo revivê-lo. Falar destes temas é uma grande alegria, tenho imenso amor pelo meu legado familiar e pela minha terra. Poder transformar esse amor no património histórico e cultural que representa a região é a minha maior motivação”.