19 de novembro de 2019

Coolaboola: A Persistência da Memória


Na aldeia de Izeda, em Trás-os-Montes, havia uma casa com uma janela aberta de onde escoavam músicas de Elvis Presley ao entardecer. Lá dentro, sentada no chão junto à grafonola, uma menina de sete anos escolhia os discos. Não sabia explicar bem porquê, mas aquela sonoridade levava-a para longe, para um mundo que nunca conhecera. Queria fazer mais do que o conhecer. Queria vivenciá-lo. E conseguiu, pelo menos um bocadinho, quando trouxe o filme “Grease” do clube de vídeo. Viu e reviu a cassete VHS imensas vezes e até ia para a escola de casaco de cabedal e t-shirt branca. O fascínio por essa onda dos anos 50 era inexplicável, mas sabia que se sentia feliz quando a surfava. “Uma surfista do tempo, aí está um belo conceito”, parece pensar, ao sorrir enquanto leva aos lábios o líquido alaranjado do Aperol Spritz e contempla, a partir do terraço do seu Coolaboola, a cor crepuscular nas fachadas dos edifícios históricos da Baixa de Coimbra. Ou então talvez pense na inesquecível cena idílico romântica que testemunhou na primeira vez que subiu aqui. Ou nos 30 anos que separam o entardecer de Izeda deste conimbricense. Cátia Melo nunca abandonou essa paixão pelo retro, pela nostalgia, pelo encanto da memória. Foi ainda mais longe. Juntamente com o músico por quem se apaixonou, Pedro Serra, transformou tudo isso num negócio que ameaça encher a cidade de experiências turísticas.  

A chegada a Coimbra ocorreu no novo milénio. Cátia tinha 18 anos, queria ser antropóloga e viver a experiência académica da eterna cidade dos estudantes. Imaginava as repúblicas como “sítios boémios onde se bebesse vinho e comesse queijo pela noite dentro, a dissertar política, antropologia ou outras questões humanitárias”. Bateu à porta da República das Marias do Loureiro. “Feminista, anti-praxe, era a minha cara”. Entrou, ficou, encontrou a boémia, os debates e ainda mais: “Um porto seguro e um sítio de liberdade, para estar, para ser e viver em comunidade”.   
Entre o curso, um mestrado e uma pós-graduação, Cátia viveu lá 12 anos. Durante esse tempo, o seu amor por objetos antigos continuou aceso. Durante as obras de requalificação da Igreja de São Salvador, algum do seu recheio foi atirado ao lixo. “Fomos logo lá”. Nessa mesma noite, um oratório estava a decorar a sala da república, os bancos de oração aumentaram o número de lugares à mesa e Cátia passou a ter um sacrário como mesinha de cabeceira. “A minha paixão pelas antiguidades aliava-se à nossa necessidade de reaproveitamento em nome da auto-sustentabilidade”, relembra. Estava sempre atenta quando as vizinhas deitavam fora rádios ou gira-discos antigos. “Aproveitava tudo”. Embora Cátia sentisse particular nostalgia por itens dos anos 80, por terem acompanhado a sua infância, a sua perdição eram as décadas de 30 a 60.


Era isso que a levava ao Café Académico, “spot dos artistas e do pessoal das bandas”.  Cátia sentia-se atraída pela cena musical de Coimbra, pelo fenómeno rockabilly (subgénero do rock que nasceu nos EUA nos anos 50) que efervescia na cidade. Bandas como Tédio Boys e Ruby Ann & The Boopin Boozers espalhavam a sonoridade dos anos 50 pela ruas e os músicos reuniam-se nesse bar da Praça da República. Cátia ficava sempre cá fora. “Fizesse sol ou frio, sou uma menina de esplanadas”. Nas poucas vezes que ia ao balcão, reparava sempre num tipo de cerveja na mão e a gritar, repetidamente, ao dono: “Isto um dia vai ser meu”. Ele também reparou nela. “É a Cátia das Marias”, alguém disse. “A partir daí nunca mais me largou”, recorda Cátia, com um sorriso. “Um dia convidou-me para beber vinho, servido em copos próprios e acompanhado de muito queijo. Apaixonei-me logo!”.  O tipo era Pedro Serra, guitarrista e co-fundador  da banda Ruby Ann & The Boopin Boozers. Pouco tempo depois, no final do Verão de 2013, viajaram juntos para Calaffel, na Catalunha, onde decorria o festival High Rockabilly. Numa das noites, foram a um bar tiki, “daqueles com as bebidas servidas nas carantonhas exóticas do Havai”. “O meu sonho era ter um bar destes”, disse-lhe Pedro. “Falamos animadamente sobre isso”, relembra Cátia. “Foi nessa noite que começamos a colar esse plano às nossas paixões, aos gostos dele e aos meus”.


“Eu não te disse?”, questionou Pedro, enquanto assinava o contrato de aquisição com o (ex)dono do Café Académico. E assim o emblemático estabelecimento transformou-se num sítio nostálgico, “onde se podem escutar músicas de uma velhinha Jukebox enquanto se desfruta de petiscos, cervejas artesanais, sangrias caseiras e cocktails tropicais”.
No entanto, o casal sentia que o seu sonho empreendedor não ficava por aqui. Havia um desígnio, denso, intangível mas indelével, que continuava a pairava no ar. “Não sabíamos propriamente o quê, mas desejávamos um espaço que reunisse todas as nossas paixões”. E elas eram muitas, embora a que mais ardesse no interior de Cátia fosse uma concept store, onde pudesse dar azo ao seu eterno encanto pelo glamour do design retro e pela cor dourada da recordação. “Sempre gostei das histórias antigas, quando era pequena sentava-me com a minha avó e ouvia, deliciada, os contos da vida dela e das amigas”. Nessas chamas também refulgia uma loja de tatuagens, uma barbearia clássica e imensas outras ideias ainda por definir.
Só faltava aguardar pela altura certa e, especialmente,  pelo imóvel certo. “Este último demorou mais tempo”. Após vários anos a visitar espaços para venda e aluguer na Baixa, surgiu a oportunidade de integrar parte do antigo edifício das Galerias Coimbra, na Praça do Comércio, reaproveitado este ano pela empresa The Loop Company. “Foi amor à primeira vista”.


A luz alaranjada do entardecer debruçava-se sobre as fachadas dos edifícios da Baixa de Coimbra. Era Inverno, mas havia andorinhas a voar. Numa das varandas dos prédios, indiferente ao frio e ao vento, uma rapariga em tronco nu tocava violino. Não é uma cena de um filme. Este foi o cenário com que Cátia deparou na primeira vez que subiu ao terraço do seu novo espaço. “Não podia ser mais maravilhoso, mais idílico”. Foi nesse momento que constatou que o seu Coolaboola seria muito mais que um conjunto de serviços. Seria um conjunto de emoções. Um conjunto de experiências.
Dois dias antes deste último Verão, o sonho abria as suas portas à cidade.

Quem as atravessa, no rés-do-chão, encontra uma loja vintage, com diversos produtos de décadas passadas, telefones de disco, máquinas fotográficas instantâneas Fuji, vitrolas, capacetes tradicionais portugueses, brinquedos de antigamente e inúmeros outros artigos retro. Alguns são réplicas, outros genuínos, como umas malas de couro resgatadas de um velho armazém em Espanha, ainda com jornais valencianos datados de 1975 como enchimento. As visitas despertam sempre memórias. E emoções. “Há uma senhora, a quem a vida não tem corrido muito bem, que adora entrar na loja, diz que os objetos que vê e toca lhe fazem recordar os melhores anos da sua vida, a infância, a adolescência, a vida de casada, a vida de mãe”, afirma Cátia, com um sorriso emocionado. “Já outras pessoas contam-nos histórias associadas ao passado do edifício, que adoramos sempre ouvir”. Nesses momentos, Cátia sente cumprido o objetivo que sempre alvejou: “trabalhar a memória, a nostalgia, as sentimentos e as emoções”.

Ao fundo da sala há um bar retro, com cerveja artesanal – incluindo uma edição dedicada a Portuguese Pedro, o atual projeto musical de Pedro Serra – e vários cocktails clássicos. “Há fãs da série Mad Men que vêm cá de propósito beber um old fashioned”. O som ambiente provém de um gira-discos. Num caixote estão várias edições especiais de discos vinil de bandas emblemáticas de Coimbra, fruto de uma parceria com o produtora conimbricense Lux Records, que os clientes podem escolher e pôr a tocar. Cátia diverte-se imenso com a reação das crianças. “Algumas perguntam-nos: como é que estes risquinhos têm música?”.



Na cave, há um boutique feminina com peças vintage. De vez em quando, Cátia fotografa as clientes com os vestidos em pose de pin-up, com um rádio ao lado e os discos no chão, partilhando posteriormente as imagens no Instagram do Coolaboola. “Experimentar roupa aqui também é uma experiência”.

Ao subir as escadas, há uma barbearia clássica, onde é possível fazer a barba de forma tradicional. “Usamos o método italiano, a navalha, a toalha, o cheirinho dos produtos, é uma experiência muito relaxante, um autêntico spa masculino”. Os cortes de cabelo são também no estilo clássico, “com styling em bilhantina e tudo”. Cátia recorda as palavras de um surfista neo zelandês, que estava a beber uma cerveja no bar e decidiu, espontaneamente, substituir o seu longo e selvagem penteado por um corte clássico. “Saiu da cadeira com um sorriso do tamanho do mundo, a dizer que nunca tinha pensado sentir-se tão bonito”.


Alguns degraus acima, há uma loja de tatuagens, “com cenas vintage deliciosas”. Os olhos de Cátia brilham particularmente quando pronuncia essas palavras. Destaca também o ambiente “tranquilo e convidativo”, onde os clientes podem conhecer os tatuadores, conversar, tirar dúvidas, esclarecer receios. “Recebemos tatuadores de todas as especialidades, ajustadas às pretensões dos clientes”.

No último andar, há um bar mais intimista – onde se servem refeições gourmet e cocktails que são “autênticas experiências sensoriais” – que Cátia idealizou para organizar eventos, festas temáticas ou “listening parties”, onde um artista pode apresentar o seu álbum ou um colecionador pode organizar uma sessão de audição com os seus discos preferidos. É aqui que fica o terraço, onde se pode sorver uma bebida clássica com vista para a Baixa conimbricense.



Tudo isto torna o Coolaboola um espaço heterogéneo. Mas Cátia e Pedro queriam, sonhavam com mais. E por isso traçaram um plano para inundar Coimbra de experiências turísticas. Duas já estão em prática:

Passeios com o Dallas
Em 2013, poucos meses antes de conhecer Cátia, Pedro comprou um Cadilac DeSoto de 1951 a um conhecido de Famalicão, que o tinha importado dos Estados Unidos. “Ele era fascinado pela série ‘Dallas’ e tinha batizado o carro com esse nome. O Pedro achou piada e decidiu manter”. O casal fez roadtrips pelo país no “Dallas” e adorou a experiência. Decidiram partilhá-la com mais pessoas. “É um carro charmoso e imponente, de seis lugares, sentimo-nos um diplomata lá dentro”, refere Cátia. “Imaginem sair daqui de carro clássico, fazer uma prova de vinhos na Bairrada e passar por sítios cheios de charme, como o Luso ou as aldeias do xisto”.


Mini-tour
Um grupo de crianças dos cinco aos 12 anos arrancam do Coolaboola para conhecer a cidade. Na companhia de uma animadora sócio-educativa, vão ao posto de turismo buscar os mapas e começam a explorar os recantos da Baixa, equipados com bússolas e binóculos. Levam também uma máquina fotográfica instantânea e cada um pode tira uma foto no sítio que quiser. “A perspetiva deles é giríssima, vêm coisas que nós não vemos. As fotos saem na hora, o entusiasmo deles ao ver as fotografias é incrível”, revela Cátia. O grupo anda pelas ruas e ouve inúmeras histórias sobre os lugares que encontram. O roteiro geralmente acaba na Sé Velha. “Para eles é um castelo, um castelo mágico, com jardins e claustros, ficam fascinados”.
Há ainda dois eventos complementares, dedicados ao publico infantil. Um workshop de teatro (para crianças dos oito aos 12 anos) na Praça do Comércio e uma “tour brincadeira”, onde as crianças vão aos espaços verdes da cidade apenas com um intuito: brincar. “Aprendem a saber estar ao ar livre, a sujarem-se à vontade, a sentirem-se livres, com a sensação de estarem no campo, na plena liberdade da natureza”.


E depois há as experiências futuras, a implementar em breve. Há um elo comum entre elas: “Não vão ser tours chatas”, garante Cátia. “Há muitas cidades dentro da própria cidade. Há a cidade de cada um de nós. A melhor forma de experienciar e vivenciar a cidade genuinamente, de forma mais intensa, é mostrar a Coimbra dos seus diversos personagens”. Cada uma dessas perspetivas peculiares – explica Cátia – terá uma tour autónoma.

A Coimbra de um Poeta, “onde os turistas acompanham um poeta conimbricense, conhecedor da história literária da cidade, que conta a história dos poetas que aqui viveram, que aqui se inspiraram e escreveram, passando pelos seus bares e outros antros de boémia”. 

A Coimbra de uma Estrangeira, “onde temos a perspetiva de uma chilena que vive na Baixa há um ano. É a Coimbra das memórias dela, do que a fez apaixonar-se pela cidade. Ela consegue entusiasmar-se por uma Coimbra que quem já vive aqui há muito tempo já não sabe viver, já não conhece ou sequer repara. Os habitantes vão ficar estupefactos. Vão visitar sítios onde nunca tinham sequer ponderado ir”.



A Coimbra de um Estudante. “Eles sabem mostrar Coimbra. A parte alta da universidade, a Sé Velha, os espaços de convívio na Praça da República, a Baixa da boémia, os mistérios das repúblicas, há imenso para viver e descobrir”.

A Coimbra de um Fotógrafo, “onde se conhecem as paisagens, as ruas e becos estratégicos para as melhores fotos em Coimbra. Tem-se em conta a luz natural, os melhores instantes, as melhores horas. Aqui, os turistas são os protagonistas da sua própria tour”.

A Coimbra de um Historiador de Arte, “que navega muito especificamente pela História de Coimbra, desde turismo religioso, uma tour medieval e até um roteiro dedicado aos azulejos, há património riquíssimo para conhecer na Baixa e na Alta da cidade”.

A Coimbra de um Arqueólogo, “um roteiro não exaustivo, mas divertido, que repesca as histórias da História. Há histórias giras, românticas, sórdidas, até macabras nesta cidade”.


Há outras experiências por descortinar, como “wine games” ou “experiências pin-up ligadas ao cocktail bar”, mas que por agora ficam no “segredo dos deuses”, entre outros desígnios arrojados deste Coolaboola, onde a colaboração faz, como o nome induz, parte do código genético do empreendimento. “Tudo isto é possível devido às sinergias que estabelecemos”, afirma Cátia. “Eu e o Pedro temos a aptidão de aproveitar o melhor das pessoas, das suas qualidades, criatividade e ideias brilhantes, para formarmos parcerias que nos permitem fazer coisas incríveis”.

O longo caminho percorrido até aqui também ajudou. “Muito”. Cátia foi produtora de eventos, celebrante de funerais, roadmanager de bandas de música, fez catering e trabalhou numa loja de tatuagens. Em todas essas funções aprendeu diversas lições, mas há uma que se destaca: “Aprendi a puxar os cordelinhos certos para fazer acontecer o melhor de uma pessoa”.

A mulher que se imaginava antropóloga, a viajar pelo mundo e a explorar África de camelo é hoje uma recordação distante. Cátia sorri quando se lembra dela. A despedida foi amigável. E esse sorriso alarga-se quando deambula pelos recantos do seu novo destino, onde passado e futuro caminham de mãos dadas.

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