Todos os fins-de-semana, uma multidão de espanhóis atravessa o Tejo Internacional no barco Balcon del Tajo. Alguns, desembarcam no Posto de Turismo de Castelo Branco. Entram e ignoram os mapas, as brochuras, as funcionárias. Limitam-se a deambular pelo espaço, com olhos ávidos e ansiosos que perscrutam cada recanto. Atrás do balcão, Margarida contempla-os com um sorriso. Está no posto de turismo há quatro décadas. Já viu turistas de todos os cantos do mundo, mas desde 2012 que está particularmente habituada a essa movimentação. Sabe que toda essa correria será prosseguida por uma questão. “Donde está el gato?”.
Esta é a história
de um gato que vive num posto de turismo. Um gato que é, ele
próprio, uma atração turística.
Tudo
começou numa manhã de Junho de 2012. Margarida estava no balcão do
posto e foi surpreendida por um grito. Uma jovem estagiária tinha
ido regar as plantas nas traseiras do edifício e assustou-se ao ver
uma gata recém-nascida, escanzelada e com olhos remelosos, quase
moribunda. “Estava sentadita num dos degraus de pedra, à espera da
morte”, relembra. Deduziu que a mãe tinha pressentido que ela
estava doente e a tinha separado da ninhada para não a contagiar.
“Não íamos abandoná-la uma segunda vez”. A notícia
alastrou-se pelo edifício. Instantes depois, toda a equipa estava
reunida em volta do acontecimento. Uns foram comprar soro fisiológico
e pomada oftalmológica, outros, leite para gatos bebés. Margarida
limpou-lhe os olhos e encheu um pires com leite. “Era trapalhona,
metia as patas dentro do pires enquanto bebia”. Alguém encontrou
uma caixa de cartão, colocaram-na no jardim, ao sol, e meteram a
gata lá dentro. “Ela ficou lá deitada, sem reação, só se via o
movimento da respiração na barriguita”. Às 18 horas, foram
vê-la. Esperavam o pior, mas ela saltou lá de dentro e,
cambaleante, dirigiu-se a elas. “Só tinha pernas e orelhas”. A
equipa ficou emocionada com a sua perseverança. Apelidaram-na de
Esperança.
Margarida desparasitou-a e tratou-lhe a conjuntivite com
medicamentos. No entanto, os dias passavam e ela não parecia
melhorar. “Desfalecia com frequência e parecia estar sempre
desequilibrada”. Resolveu levá-la ao veterinário. Foi lá que
teve duas surpresas. A primeira: a Esperança não era uma gata. A
segunda: ele era cego, embora o problema fosse reversível. “Tinha
a ver com os valores sanguíneos”, refere. O gato ficou internado,
sob medicação. No final do dia, Margarida recebeu um telefonema.
Tinha piorado e estava com convulsões. Foi colocada a hipótese de
eutanásia. “Vamos esperar pela manhã”, sugeriu Margarida.
“Prepare-se para o pior”, advertiu a veterinária.
Dominada
pela ansiedade, Margarida não dormiu nessa noite. Não o conseguia
explicar, mas a sua afeição crescia a um ritmo desproporcionado
quando comparada com o pouco tempo decorrido desde que o felino
entrara na sua vida. E persistia uma dúvida que ameaçava não a
abandonar, caso o gato o fizesse nesta noite de insónia. “Terei
interferido com a ordem natural das coisas?”.
Era
manhã cedo quando o toque do telefone irrompeu pelo quarto.
Margarida não hesitou, respirou fundo e atendeu. Tentou, em vão,
analisar a voz feminina que lhe disse que ia transferir a chamada à
veterinária. “Se fossem más notícia será que me saudava de
forma tão bem-disposta? Ou isso será apenas o comportamento
padrão?”. Estremeceu quando ouviu o auscultador ser levantado no
outro lado da linha. No entanto, a primeira frase devolveu-lhe o
sorriso. “Sabe o que lhe digo? Este gato é um mimado, só quer
colo”.
O
gato regressou ao posto de turismo e foi rebatizado. De Esperança,
passou a Panças. “As pessoas pensam que é por ele ser gordinho,
mas naquela altura era tudo menos pançudo”, afirma a funcionária.
A ideia era manter o gato naquele local até este ser adotado. Houve
manifestações de interesse, mas nenhuma se concretizou. Os dias
passaram, o Panças recuperou a visão, ganhou peso e a afeição de
todos. Num compartimento privado no posto, colocaram duas tacinhas,
um pequeno ginásio, uma caixinha com areia, uma cama almofadada e
até reuniram um pequeno conjunto de brinquedos. “Pouco a pouco, o
seu espaço foi nascendo”.
As
semanas na companhia do Panças passaram a meses. De meses, a anos.
“Foi um processo espontâneo e natural”. De um momento para o
outro, parecia que ele sempre fizera parte do espaço. Todos se
habituaram à sua presença e, sobretudo, à sua personalidade.
Muitas vezes ignora a caixa de areia, pois “prefere pedir que lhe
abram a janela para ir ao jardim”. Da mesma forma que ignora a taça
de água, pois “prefere saltar para o lavatório e pedir que lhe
abram a torneia”. E até ignora os seus brinquedos felinos, pois
“prefere brincar com tampas de plástico das garrafas, que traz na
boca até às nossas secretárias para as arremessarmos para ele ir
buscar, como se fosse um cão”, diz Margarida, acrescentando que
esse não é o único exemplo das tendências caninas do Panças.
“Ele também dá sinal”, afirma, com um sorriso. “Se entram
turistas no posto e eu estou lá fora, ele vai à porta para o
jardim, dá um miado discreto e volta a entrar. Se eu ignoro, ele
regressa, dá um miado mais persistente, e volta para dentro”.
“Mira,
él está aquí!”, alguém
grita junto à estante com livros das regiões do Centro de Portugal.
O grupo espanhol conflui de imediato para o local. “Que lindo
eres!” e outras expressões similares são abafadas pelo barulho
dos obturadores das máquinas fotográficas. Lá atrás, indiferente
a todo o alarido, o Panças dorme num puff.
“Os turistas
adoram-no! Fazem sempre uma festa quando o vêm”, afirma a
funcionária. Está habituada ao Panças monopolizar as atenções no
Posto de turismo. “Se ele está à vista, os turistas já não nos
ligam nenhuma, é como se fossemos transparentes”, diz, a rir. Esse
entusiasmo acompanha sempre os viajantes para os seus países de
origem. É uma recordação que desperta sempre um sorriso. É uma
história que nunca deixa de ser contada. “Na próxima semana, já
vão surgir novas pessoas a perguntar por ele”.
A
busca pelo Panças é um ritual quase diário dos visitantes do Posto
de Turismo de Castelo Branco. Quando não está à vista, procuram-no
no jardim e deliciam-se a vê-lo a brincar com os melros, que
saltitam à sua frente na relva, ou a subir às árvores. “Parece
um esquilo”, sorri Margarida. Esteja onde estiver, as máquinas
fotográficas nunca deixam de disparar. “Há fotografias dele um
pouco por todo o mundo”. Recentemente, uma Japonesa passou uma
manhã inteira no posto a tirar-lhe fotografias. “Ele escondia-se
atrás dos expositores ou das plantas, mas ela, pacientemente,
segui-a-o para todo o lado. Não dizia uma palavra, só sorria quando
revia as fotos no visor da máquina”.
Esse
silêncio, no entanto, é incomum. Margarida é frequentemente
questionada sobre a história do Panças. Repete-a vezes sem conta.
Turistas, visitantes, albicastrenses, todos escutam cada detalhe com
atenção. E todos louvam o posto pelo “gesto cívico e humano” e
sublinham que devia ser um exemplo seguido por outros espaços ou
entidades.
Timidamente,
Margarida sorri sempre com essas interpelações. “Foi apenas um
gesto natural e espontâneo, que acabou por se transformar numa fonte
de alegria diária para quem trabalha aqui e para todos os turistas
que nos visitam”, afirma. Explica que o gato não é um elemento a
mais, mas um elemento paralelo, que “já faz parte da mobília” e
está perfeitamente enquadrado e adaptado às circunstâncias. “É
muito limpinho e bom comportado, de forma condicente o com o local
onde está inserido”, sublinha.
“E
pronto, essa foi a odisseia do Panças”, refere Margarida, com os
braços abertos, em jeito de conclusão. Um gato com uma manta com o
seu próprio nome bordado. Um gato dócil mas nem sempre adepto de
colo. “Ele gosta de procurar o seu próprio canto e estar
sossegado”, diz Margarida. Faz uma pausa, sorri e acrescenta: “A
não ser quando ele pressente que as pessoas estão em baixo”.
Revela que há alguns anos, num período menos positivo, o gato
passou a dormir diariamente no seu colo. “Noutra altura, um dos
colegas do andar de cima estava particularmente triste. Todas as
manhãs ele ia miar para que lhe abríssemos a porta, subia as
escadas e ia sentar-se no colo dele”.
O quotidiano deste
posto de turismo está recheado de mil e um momentos de cumplicidade
felina. “Até ajuda a quebrar o gelo com os estagiários mais
tímidos”, relembra Margarida. Sorri, enquanto lê mais um e-mail
de uma turista, que enviou uma fotografia e escreveu um parágrafo
inteiro a louvar a atitude. Não é indiferente aos elogios, mas não
se deixa contagiar por eles. Debruça o olhar para o Panças,
enroscado num dos sofás.
“Acho que é um animal feliz e isso
é que é o essencial”.