12 de outubro de 2020

O posto fiscal das memórias não declaradas

 


Manuel Conceição só usou a sua espingarda uma vez. Era de noite e o luar permitiu-lhe vislumbrar uma silhueta suspeita entre os arbustos. Apertou o gatilho, com o cano virado para o ar. O contrabandista ergueu os braços, largou a mochila e fugiu. Manuel aproximou-se dela e quando a abriu não ficou surpreendido. Algumas ferramentas e utensílios de cozinha, o normal.
Regressou ao seu Posto Fiscal e ao seu plantão. Hasteou a bandeira ao amanhecer, como em tantas outras manhãs de 1960, envolto num bucólico silêncio e na vista deslumbrante do topo da sua colina para as águas do Tejo internacional, que ondulavam entre montanhas portuguesas e espanholas. 

Cumprimentou o colega do turno seguinte e caminhou para casa. Passos firmes, passos de sentimento de dever cumprido. A sua aldeia, Perais, ainda ficava longe, a quase a cinco quilómetros. Longe estavam também os 35 anos em que aquela rígida linha invisível que se tonara a sua vida deixaria de existir. Na altura, era impensável. E também não lhe passava pelo pensamento que o seu imaculado posto estaria anos e anos em ruínas até, um dia, surgir a oportunidade de o converter num empreendimento turístico. E muito menos que seria a sua esposa de sempre a sobreviver-lhe e a partilhar as memórias e o legado do seu Monte Fidalgo.




“Acho que foi em 1957 que ele veio para cá. Espere, não. Foi 1958, quando nasceu o nosso filho”, recorda Lídia Moura. Os seus 86 anos não lhe tolheram a memória, nem a genica com que percorre o estradão de terra que leva ao antigo Posto Fiscal de Monte Fidalgo (Perais, Vila Velha de Rodão). É a primeira vez que regressa a este local, desde que ele está abandonado. Passaram anos, passaram vidas. “Nunca tive muita vontade de cá vir, para não ver este abandono. O posto era bonito e gostava de o recordar como o deixei, como o vi pela última vez”. No entanto, quando soube aquele espaço poderia vir a ser renovado e transformado em algo completamente diferente, a saudade misturou-se com a curiosidade. “Olhe, se calhar até lá vou”.



O falecido marido, Manuel Conceição, foi guarda fiscal neste posto de 1958 a 1962. “Ele fazia dois turnos diários de quatro horas, um de dia e um de noite”. De 12 em 12 dias, ficava de plantão, ou seja, permanecia no posto 24 horas seguidas. “Era das 8 da manhã até às 8 do dia seguinte”. Esses eram os dias mais solitários para ambos. Lídia não ficava com o marido no posto, era proibido. Mas ia lá todos os dias levar-lhe o almoço. “Ia a pé de mochila às costas, com o pequenito ao colo”, relembra, com olhos húmidos. “Ainda era um bocadinho longe, mas quando a gente é nova nada cansa”. O farnel era variado. Pão, chouriço, carne estufada, bacalhau, salada de feijão. “Graças a Deus, ele gostava de tudo”.  


Nesses tempos, o contrabando era uma prática muito comum na zona. Era tolerada, era quotidiana. As populações locais viam-na como um meio de subsistência. Havia produtos que escasseavam em ambos os lados da fronteira. Os espanhóis desejavam o nosso café, a nossa farinha, a nossa amêndoa. Já nós, desejávamos ferramentas, utensílios de cozinha, tabaco e pequenos itens que eram novidade aos olhos de cá, como isqueiros, perfumes, caixas de joias. Pagar o imposto alfandegário tornava incomportáveis esses desejos, por isso pessoas de todas as idades “faziam-se ao caminho” e arriscavam-se nas matas, montanhas e rios com sacos de 20 ou 30 quilos às costas, tentando passar despercebidos aos carabineiros, do lado de lá, e a homens como o Manuel do lado de cá. 


“Ele gostava do que fazia. Isto aqui era tranquilo, as pessoas iam comprar umas coisitas lá ao outro lado, mas não era nada de perigoso”. O que custava mais era a solidão. Por vezes, Lídia jantava com ele na pequena cozinha do posto. “Cedo, para conseguir regressar a casa antes de ser de noite”. Ouviam rádio, sentiam o conforto da lareira, diziam “até amanhã” e Manel regressava à companhia da sua espingarda e da encantadora paisagem que o cercava, igualmente bela ao luar como ao sol.

 


Os encantos deste sítio eram tantos que até o visitavam em momentos de folga. Por vezes à tarde, onde Lídia se recostava e ficava a observar Manuel a pescar barbos e bogas com uma tarrafa. Por vezes à noite. “No verão, quando era mais quente, vínhamos cá, descíamos ao rio, estendíamos uma manta na areia e dormíamos ao relento. Nós dois e o pequenito, junto ao rio”.


Passos que cessam, um assoalho que deixou de ranger. Encontro Lídia parada no meio de uma ampla divisão, rodeada por paredes brancas, rodapés azul-cinza e memórias invisíveis aos meus olhos. “Aqui aconteceu uma das maiores surpresas da minha vida”.
Como em tantas outras noites em que Manuel estava de plantão, Lídia foi-lhe levar o jantar. Levou bacalhau, era véspera de Natal. “E era também o dia em que eu fazia 27 anos”, acrescenta, com um sorriso. Quando entrou, viu duas camas de solteiro da camarata encostadas uma à outra. “Hoje dormindes cá”.


Acompanho-a até à janela que se abre para o Tejo e por onde o seu olhar sorri enquanto confessa: “Olhe nem dormi a noite toda, cheia de medo que o comandante aparecesse cá a fazer a ronda e nos apanhasse”. 

Deixo-me ficar mais uns instantes junto a essa janela sem vidros por onde espreitam o passado, o presente e o futuro. Olho para as montanhas revestidas de verde e para as águas tranquilas do rio. “Quem contemplará tudo isto um dia?”, penso.



É com o objetivo de estimular a recuperação de imóveis públicos devolutos como este, recheados de potencial turístico devido à sua localização idílica, ao seu património natural e ao seu legado histórico, que a Turismo Fundos criou o Fundo Revive Natura em 2019.     

O fundo visa transformar estas ruínas cheias de histórias em oportunidades de investimento turístico. “Tem como objetivo a requalificação e a valorização dos imóveis, compatibilizando a conservação, recuperação e salvaguarda dos valores em causa com novas utilizações, que beneficiem as comunidades locais, atraiam novos visitantes e fixem novos residentes”.


Há, presentemente, 16 imóveis disponíveis para concurso (o prazo para concorrer é até 19 deste mês), sete dos quais na Região Centro.

Os antigos postos fiscais de São Pedro de Moel, Quiaios, São Jacinto, Alares e Malpica do Tejo. A antiga Sede da Administração Florestal na Figueira da Foz. E o antigo Posto Fiscal de Monte Fidalgo.



O monte tem um pequeno planalto, em frente aos dois edifícios, com vista desafogada para o rio e para o vale. Quantas vezes se terá perdido naquela fronteira líquida o olhar de Manuel? Quantas horas, quantos anos? É lá que se encontra Lídia. Em vez de uma espingarda ao ombro, tem um guarda-chuva aberto, que a protege do calor tórrido de outubro. “Aqui o verão dura mais tempo”.


Restam as recordações, que se tornaram quotidianas. A farda cinzenta do marido, hoje usa-a na apanha da azeitona. “O tecido é fresco e liso, não pega lá nada”. Uma medalha, ofereceu-a ao Núcleo Museológico do Contrabando, em Perais, onde é contemplada todos os dias pelos visitantes. As fotografias a preto e branco testemunham a vida a três que existia até só passar a existir ela. Mas todas as existências, tal como as memórias do seu Monte Fidalgo, caminham consigo para todo o lado.



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