27 de fevereiro de 2020

Fantasmas de Sintra assombram antigo matadouro em Leiria


Havia um silêncio pesado que se assemelhava ao ar, que era húmido e bolorento, quase irrespirável. E, no entanto, um dos maiores medos de Michel Simeão era ouvir uma respiração que não fosse a sua. Fechar os olhos não o confortava. Era redundante. Estava trancado na escuridão de um jazigo de um cemitério, numa madrugada na Escócia. 

Michel tinha chegado a Edimburgo no dia anterior. Quando visitou o centro histórico, viu anunciadas imensas atividades turísticas de terror imersivo, cujos temas incluíam assombrações, assassinatos e lendas macabras. Inspirou fundo, sorriu e comprou um bilhete. Aos 25 anos, já se tinha dissipado o medo agonizante que o impedira de ver filmes de terror no passado. Entrou às cegas, sem fazer ideia do que ia acontecer. Sem saber que aquela experiência o ia inspirar a criar o mais bem-sucedido evento de terror imersivo em Portugal, o Projecto Casa Assombrada em Sintra, com sessões esgotadas durante 16 meses consecutivos e com mais de 10 mil participantes. E sem saber que em 2020, alguém lhe ia colocar a chave de um antigo matadouro de Leiria nas mãos, juntamente com total liberdade criativa para produzir o seu novo evento.


Michel nasceu em Reims, no nordeste da França, e veio para Portugal em 1983, com cinco anos. Cedo desenvolveu uma paixão pela escrita. Na escola primária, vibrava quando as aulas eram dedicada às composições. “Tinha a sensação de infinitude, podia imaginar qualquer universo. Quando podia escrever, valia tudo”. Aos 12 anos, já escrevia contos. Aos 16, a primeira peça de teatro. Sentiu que era esse o caminho. “Nunca tive pretensões de escrever obras para serem lidas, sempre quis escrever coisas para serem feitas, para que alguém lhes pudesse dar vida”. 


Simultaneamente, sentia-se atraído por filmes de terror que não tinha coragem de ver. “Quando tentava, acabava por fugir da sala ou tapar a cara”. Estreou-se aos 12 anos, com “O Pesadelo em Elm Street”. No entanto, seria o “Exorcista” a lhe tirar o sono. “Fui criado numa igreja evangélica, cresci a acreditar em possessões, demónios, essas coisas todas enquanto era miúdo”. Após a secundária, estudou música e teatro. Formou um grupo de teatro amador aos 18 anos, chamado Criação. “Pus os meus amigos todos a fazer teatro”. No novo milénio, cria a associação Teatro reflexo.

Uma das suas primeiras peças captou a atenção do pelouro da Cultura da Câmara de Sintra. Foi convidado a desenvolver algo na Casa Museu local, onde lançou a sua primeira atividade imersiva, uma espécie de cluedo, intitulada "Crime na Casa Museu".
Em 2011, surge o primeiro evento imersivo de terror. Michel foi desafiado por um galerista a organizar algo no seu atelier. “Queria diversificar culturalmente o espaço”. Decidiu ir averiguar. Quando chegou lá, constatou que o atelier fazia parte de uma mansão antiga na zona de Alcântara, em Lisboa. E que o galerista tomava conta de todo o edifício. “Que casa é aquela, posso ir ver?”. Sorriu com a reposta afirmativa, subiu as escadas e percorreu cada recanto dos seus dois andares com salões interligados. “Era fantasmagórica, estava doido com aquilo”. Quando reuniram, Michel trocou-lhe os planos. “Quero fazer aqui uma cena, mas não é no teu atelier, é naquela casa. Posso?”. Surpreendido, o galerista anuiu, embora com reticências. “Mas aquilo está tudo velho”. Mais um sorriso, ainda mais largo. “Está perfeito!”.

A "casa assombrada" de Alcântara

“Alguém se suicidou nesta sala. Esse espírito ainda está aqui. E a menina Clarissa sente a presença dele”. Foi essa ideia que possuiu o pensamento de Michel, no preciso momento em que folheou um álbum antigo de família que encontrou na casa. “Era uma cena muito creepy, fotografias muito antigas, em sépia”. A partir daí, começou a criar uma narrativa de coisas sobrenaturais que tinham acontecido na casa. Mas o seu plano era ainda mais arrojado. Criou um blog inteiramente dedicado aos “fenómenos” dessa casa, inscreveu-se em fóruns dedicados ao paranormal e começou a espalhar essas histórias. E só depois lançou o seu evento, inédito no país: Uma visita organizada a uma casa assombrada real. 


“Foi o meu laboratório, punha as pessoas em quartos fechados para sentirem a energia da casa, assombrei a casa com imensas presenças que não se viam, só se sentiam. O meu objetivo era esse, não queria mostrar nada, queria que se sentissem coisas”. No final, havia uma sessão espírita, com um ouija board, onde, subitamente, havia objetos a mover na sala, entre outras “manifestações”. “Era tão cru, com tão pouca produção, que parecia tudo mesmo real”, afirma.

O marketing de guerrilha de Michel funcionou. Os fóruns começaram a arder com discussões sobre a misteriosa casa de Alcântara, cuja súbita fama chegaria até às páginas dos jornais. “Casa assombrada em Alcântara recebe visitas guiadas à noite”, noticiou o semanário SOL. “Esgotamos aquilo tudo! Não estava à espera, mandei a ideia cá para fora e, de repente, aparecia montes de gente, desde aficionados do terror e das experiências esotéricas a meros curiosos”.

No entanto, o evento teve vida curta. Durou apenas um mês e meio. “Certo dia, o dono da casa estava a ler o jornal e reconheceu-a, descobriu o que andávamos lá a fazer e quis que acabássemos com aquilo”. Apesar de ter de abdicar de uma “lista de espera enorme”, Michel viu cumpridos dois importantes desígnios. “Percebi que existia um imenso potencial inexplorado em Portugal para trabalhar esse tipo de eventos de terror”. E criou, logo ali, uma leal e dedicada fan base que, durante anos, lhe iria “entupir a caixa do correio a suplicar por um novo evento”.

Quinta Nova da Assunção, Belas, Sintra

E seriam quatro. Quatro longos anos até Michel encontrar o espaço ideal para materializar a ideia que tinha. Após uma reunião com o município, obteve autorização para rentabilizar um imóvel que estava sem uso: A Quinta Nova da Assunção, um palacete de estilo neoclássico do século XIX, com mais de 25 assoalhadas, na vila de Belas, em Sintra. “Um sítio maravilhoso, criei o Projecto Casa Assombrada de raíz, pensado para aquele sítio. Comecei de imediato a trabalhar nas histórias e na narrativa”. A estrutura da casa adequava-se “perfeitamente” a um conto assombrado. Corredores longos, salões amplos e muitas vezes interligados, ornamentos clássicos e um misterioso sótão recheado de pequenos compartimentos. O “maior desafio” foi a introdução de audioguias, que iam informando o participante do enredo à medida que este explorava a casa. “Nunca tínhamos experimentado, tinha de funcionar como um relógio suíço, com sincronização”.

"Projeto Casa Assombrada" Foto: Rafael Marchante/Reuters


Inaugurou o evento em Junho. “O meu objetivo inicial era fazer o Verão todo; já era muito bom”. Assim que abriram as inscrições, foram inundados com pedidos de reserva. Atingiram o primeiro lugar de vendas nacionais da Ticketline e esgotaram as sessões de um mês inteiro em apenas cinco minutos. “De repente tínhamos quatro mil pessoas em lista de espera”. Os primeiros participantes começaram a partilhar nas redes sociais a sua experiência na mansão de Belas. As partilhas pareciam contagiosas e o evento tornou-se viral. “Passou de boca em boca, foi incrível, não esperava este boom”, confessa Michel. O Projecto Casa Assombrada acabou por ficar em cena de Junho de 2015 a Outubro de 2016, sempre com sessões esgotadas.

Quinta Nova da Assunção, Belas, Sintra

Nos dois anos seguintes, Michel resolve produzir dois novos eventos imersivos dentro da mesma temática, mas com formatos díspares. “Ímpios” e “O Internato”. No primeiro, pretendia “fazer teatro e contar uma história de terror num formato diferente”. O segundo era um espetáculo “essencialmente narrativo”, com cenas de terror a decorrer em cada sala de uma casa. “Cada uma dava um pequeno fragmento. Ligando-os todos, obtínhamos uma história”. 

Apesar de, já preventivamente, o Teatro Reflexo ter assumido que estas produções eram “radicalmente diferentes” da anterior, parte do público parecia exigir a duplicação do evento de Belas e contestou o rumo experimentalista. “Estamos sempre a redescobrir, a tentar perceber que novos caminhos podemos percorrer. Nunca vou duplicar eventos, prefiro fazer coisas diferentes, aprender com elas, retirar o que resultou e adaptar”, afirma Michel. Apesar desses pequenos focos de resistência, ambos os eventos tiveram sessões esgotadas durante seis e cinco meses, respetivamente, totalizando 10,560 participantes.


Em 2019, Michel resolve fazer um ano sabático das produções de terror. “Depois do Ímpios, sentia que tinha de parar”. Integra uma equipa de guionistas e participa no argumento de duas novelas da TVI. No entanto, por mais que se tentasse afastar do terror, ele parecia persegui-lo. Nesse mesmo ano, é contactado por um cliente que tinha participado no evento de Belas. Este tinha uma empresa de organização de eventos, a About Bliss e queria fazer um evento conjunto, num antigo matadouro em Leiria. Os olhos de Michel brilharam. “Fiquei doido, quem é que tem oportunidade de trabalhar num matadouro?”. Para além disso, atraia-lhe a ideia de fazer algo fora da Grande Lisboa. “Gosto da ideia de descentralizar a cultura”.


A primeira visita ao espaço encantou-o. “Havia morcegos por todo o lado e sentia-se a carga pesada associada ao edifício. Para além disso, era enorme, permitia fazer imensas coisas em conforto e segurança”. Explica que este é um dilema com que, muitas vezes, os organizadores destes tipo de eventos se deparam. “Procuras sempre um sítio com aspeto assustador, mas depois queres levar para lá pessoas e tens tetos a cair”. 

À medida que ia explorando os recantos do espaço, a narrativa desenhava-se na sua mente. “Vai retratar uma família disfuncional que vive à margem da sociedade normal, que se rege sob princípios religiosos levados a um extremo e que tem um matadouro como negócio de família”, revela Michel. A experiência começa por ser narrativa e depois “mergulha no terror imersivo”, com o participante a explorar o espaço e a tentar encontrar respostas para tudo o que ficou por esclarecer. “Vamos experimentar muitas coisas inéditas”, assegura Michel. “Este novo evento, que intitulámos ‘O Matadouro’, é a combinação de todas as coisas melhores que já fizemos”. 


Um dos maiores desafios desta produção foi a importação de material de efeitos especiais. “Coisas super impactantes que não se encontram cá”, diz Michel, que contactou um estúdio de cinema de Los Angeles para importar máscaras, prostéticos, entre outros adereços “ultra-realistas”. A palavra importar devia estar entre aspas. Para não arriscar que o material ficasse retido na alfândega e comprometesse a data de estreia do espetáculo, Michel encontrou uma forma “criativa” de contornar esse eventual obstáculo. “Temos um amigo que é hospedeiro de bordo e vai a LA com frequência. Voo a voo, vai trazendo algumas coisas na mala”.

A aposta na intensidade dos desafios será mais alta do que nunca. “Quero pôr isto no nível máximo de realismo que conseguir”, afirma Michel, confessando que “dificilmente” entraria no Matadouro enquanto participante. “Eu crio experiências que eu próprio, se calhar, não faria. Tenho esta dicotomia em mim. Consigo criar experiências boas, que têm corrido bem e valido a pena fazer, porque consigo pôr-me muito bem na pele de quem se vai assustar. Consigo perceber muito bem o que é que resultaria em mim. Sou a minha própria cobaia nesse sentido”.


Perante o nível meticuloso de realismo destas produções, por vezes, verifica-se uma situação paradoxal: Participantes que pagam para viver uma experiência imersiva e depois tentam, a todo o custo, abstrair-se da imersão no decurso do evento. “Há pessoas que quando vêm fazer uma experiência de terror querem provar que não conseguem ser assustadas. Quando vens neste mindset, vais minar a tua própria experiência”, afirma Michel. “Riem-se de tudo, tentam desmistificar, desmontar tudo o que vêem e experienciam”, acrescenta, com um sorriso e um piscar de olhos: “Por vezes isso também é medo, é uma forma de mascarar o próprio medo”.

Essas situações, explica, são “negativas” para o participante e para os próprios atores, “que estão do outro lado, a esforçar-se por manter a seriedade dos seus papéis”.
Deixa um conselho a todos que vão entrar no Matadouro: “Acima de tudo, venham disponíveis. Entrem para acreditar naquilo que vos vão contar, não entrem como quem vê as coisas de fora. Imersivo é estar dentro, não é estar fora”.


A aposta na Região Centro, garante, é para manter. “Se me convidarem amanhã, estou cá outra vez. Se houver um espaço e se este comunicar comigo, eu vou”. Revela-se confiante com a experiência imersiva que está a ser criada mas não arrisca prognósticos em relação à adesão na região. “Se este espaço físico estivesse em Lisboa, tenho a certeza que íamos estar em cena pelo menos dois anos a fazer isto. Em Leiria, não faço ideia, é a primeira vez, vamos descobrir”, afirma, sorridente. Mas os primeiros indícios são positivos. O Matadouro estreia em Abril e esse mês já está esgotado. “E Maio para lá caminha”, refere. “Vendemos quase dois mil bilhetes em duas semanas”.
[Mais informações sobre o evento e a bilheteira, aqui]

No entanto, apesar do espectro das lotações esgotadas que o segue desde que se aventurou no empreendedorismo na área, Michel é cauteloso quando aborda o futuro. “Nunca sabemos como vai ser o dia da manhã quando vivemos de criação. Estamos sob escrutínio constante”. Mas a incerteza não o apoquenta. “É gratificante viver um quotidiano em que fazemos o que gostamos. Ver todas estas criações a materializarem-se vai além dos nossos sonhos mais loucos”.

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