27 de agosto de 2019

O regresso ao futuro do ZX Spectrum no Centro de Portugal


A infância de João Ramos era comum a tantas outras crianças da década de 80. Conduzia carros de rolamentos no alcatrão, colecionava bonecos ‘Masters do Universo’ (tinha todos, até o famoso castelo),  jogava Monopólio ou ‘O Sabichão’ com os amigos. E tinha um Spectrum. Recebeu o famoso microcomputador da empresa britânica Sinclair quando tinha seis anos. Ficou fascinado com a “caixinha mágica” e passava tardes inteiras com os amigos a jogar aqueles jogos tão peculiares, que tinham o formato de uma cassete de áudio e eram carregados num gravador que enchia a televisão de riscas horizontais coloridas e a casa de um som tão agudo quanto irritante. 


João refastela-se no sofá de couro castanho. Já passaram 35 anos e não precisa de fazer um esforço acentuado de memória para ainda conseguir ouvir essa sonoridade distante. Debruça-se sobre uma mesa, estica o braço e carrega a tecla play de um velho gravador e ela regressa aos seus ouvidos, tal como as riscas ao ecrã de uma televisão ITT, ainda com caixa de madeira. “Tudo começou com esta caixinha mágica”, pensa para si, enquanto olha em redor da sala, toda decorada como se estivéssemos de regresso aos anos 80. Não é um mero exercício revivalista. A sala faz parte de uma exibição patente no Museu da Pedra, em Cantanhede, denominada Load “” -  o celebre código que tinha de ser inserido no computador para carregar um jogo - que João criou com a sua coleção de computadores Spectrum, a maior do país e que o tornou num dos mais reputados colecionadores do mundo. Uma coleção com uma misteriosa coincidência por trás e um desígnio ousado pela frente. 



Tudo começou aos seis anos, quando João recebeu a caixa mágica. E tudo se adensou com o entusiasmo de um tio, radio-amador e apaixonado pela eletrónica,  que vivia no Algarve e lhe trazia sacos cheios de material quando vinha visitar a família. “Eram sacadas cheias de jogos”, relembra João, com um sorriso nostálgico. Pendurava-a no guiador da bicicleta e pedalava até à casa dos amigos, onde passavam horas e horas a experimentar todos aqueles jogos. Maniac Miner, Jet Set Willy, Chucky Egg, Match Day,  Pijamarama, Commando, Rick Dangerous, Barbarian. Cada cassete era um mundo mágico a explorar. Quando o jogo entrava, claro. Os dados eram transmitidos por áudio através de um gravador. Geralmente o processo demorava entre 10 a 15 minutos. João e os amigos iam lanchar e quando regressavam ou tinham o jogo carregado, ou deparavam com a fatídica mensagem  “R tape loading error, 0:1” num ecrã branco. “Quando acontecia isto, usávamos uma chave de fendas para afinar os agudos no gravador”, recorda João, aludindo a um truque que se alastrou de Norte a Sul de Portugal sem que existisse Internet ou telemóveis. 


“Eram genuínos momentos de convívio, onde fiz amizades para a vida”. À noite, já em casa, as incertezas, embora de natureza diferente, perduravam. “Naquela altura eram comum só haver uma televisão nas casas portuguesas, ou se jogava ou se via a novela”. Após um “árduo período de negociação”, João geralmente conseguia algumas dezenas de minutos antes de ir dormir. Um dilema que morreu numas férias da Páscoa. “O meu padrinho ofereceu-me uma televisão Minerva, com ecrã de 37 centímetros”. A partir daí, João conquistou um novo território cheio de liberdade para explorar o potencial do Spectrum. Foi no seu quarto que aprendeu a programar. “As sacas do meu tio não traziam apenas jogos, também manuais, revistas, programas e imensos periféricos”. Todo esse material acendeu-lhe a curiosidade. Transcrevia páginas e páginas de listagens com códigos para o computador, só para ver acontecer algo no ecrã. Imaginava-se a criar os jogos, em vez de apenas os jogar. “Naquele momento, na minha cabeça formulou-se uma certeza: a minha vida ia estar ligada a computadores e tecnologia”.



No oitavo ano, o Spectrum foi encaixotado. Já tinha cumprido o seu papel. Como tantos portugueses, João já tinha desenvolvido algumas competências relacionadas com a computação por causa dele. A partir daí, transitou para um PC. A informática manteve-se presente no seu percurso académico, na secundária, na universidade. Em 2000, já engenheiro informático, estagiou numa startup no Grupo Salvador Caetano, onde criou uma ferramenta de cross sell, o Predictor. “Nunca mais me esqueci porque tem o mesmo nome que um teste de gravidez”, relembra, sorridente. Pouco depois, integrou os quadros da Critical Software (CS). Presentemente, é CEO da Retmarker, empresa detida pela CS que produz software para oftalmologia, especializado na prevenção da cegueira através da inteligência artificial. Foi já nesse cargo que deu uma entrevista onde se identificou como proveniente da ‘geração Spectrum’. “Foi aí que o bichinho voltou a mexer”. Estava na hora de homenagear a máquina que tinha marcado a sua infância e moldado o seu futuro. 



Numa manhã de 2013, João visitou a feira de velharias de Coimbra e viu um Spectrum 48k, o mesmo modelo do seu, que há muito tinha deixado de funcionar. Negociou-o com a vendedora e comprou-o por 15 euros. Fez a viagem para Cantanhede ansioso por experimentá-lo. Ligou-o à corrente e nada. Desmontou-o, constatou que o problema era no teclado. Foi buscar o antigo e fez um transplante. Contou até três e ligou-o. Estava a funcionar. Entusiasmado, conectou-o a um plasma de 40 polegadas e tirou uma foto, que publicou no Facebook, com a legenda: “Adivinhem quem voltou”. Choveram likes e comentários. O feedback incentivou-o ainda mais. “Foi nesse dia que decidi que ia começar a colecionar Spectrums”. Sossegou a mulher, dizendo-lhe que seriam só três ou quatro. Deixa escapar um sorriso malandro. “Já tenho mais de 100”.

Foto: Catarina Gralheiro

A arte do colecionismo é morosa e árdua. Por trás das peças exibidas há incontáveis horas no OLX, Ebay e fóruns da especialidade. Há imensos Spectrums com características diferentes em várias partes do globo. Um dos mais raros está na América Latina, uma versão NTSC que tem um interruptor diferente,  “algo que não interessa a ninguém exceto a quem é perdido por estas coisas”. 
João descobriu um no Peru, na plataforma de vendas Mercado Libre. No entanto, o vendedor não queria fazer o envio para Portugal. “Não venda isso a ninguém que eu arranjo uma solução”. E recorreu à sua máxima sagrada: “Há sempre um português em cada canto do mundo”. Contactou alguns amigos na Venezuela, um deles conhecia um peruano, jogador de futebol de uma equipa da capital, Lima. “Perfeito, é aí mesmo que ele está à venda”. O jogador aceitou fazer o negócio. O próximo passo era arranjar forma de transferir os 265 sois peruanos (cerca de 70 euros). “Teve de ser por Western Union”.  João ainda teve de efetuar mais duas transferências, uma por mudanças de câmbio e outra para as despesas de envio. “O pessoal no banco já pensava que se tratava de um esquema marado”, afirma, a rir.

Foto: Catarina Gralheiro

A sua máxima é infalível. Seja para trazer monitores CRT de um hotel de Évora ou um veículo Sinclair da Holanda.  Sim, leu bem, um veiculo. Em 1985, a Sinclair lançou um veículo elétrico futurista que pretendia revolucionar o transporte pessoal. “O Clive Sinclair era um visionário com muito interesse pelo tema da mobilidade. Ele sonhava com a implementação deste sistema de transporte individual, um para cada elemento a família, para pequenas deslocações”, afirma João. “Estes veículos, como não ultrapassavam os 25 KM/hora, podiam ser conduzidos por qualquer pessoa com mais de 14 anos, sem necessidade de carta de condução”, complementa. 
Sinclair investiu sete milhões de libras neste projeto, altamente inovador mas que se tornou num fiasco comercial. É um artigo extremamente raro e João não queria acreditar nos seus olhos quando encontrou um à venda na plataforma de vendas Marktplaats, na Holanda.

Voltou a acionar a sua máxima. Descobriu um grupo do Facebook “Portugueses na Holanda”, aderiu e pediu ajuda: “Por favor, preciso que alguém vá a esta cidade e me compre isto. Confiem em mim, isto é para um maluco em Portugal mas que é um gajo sério”. Alguém se disponibilizou. Conversaram,  combinaram e João transferiu o dinheiro. Agora faltava arranjar forma de trazer a relíquia para território nacional. “Foi nesse instante que aconteceu mais uma daquelas coisas que não se conseguem explicar, onde tudo se parece alinhar como se fosse predestinado”. O bom samaritano geria uma empresa dedicada ao transporte de mercadorias entre Holanda e Portugal. “Até me enviou uma foto do C5 a ser embalado e tudo”.  Hoje, é um dos ex-libris da coleção, “uma das peças mais icónicas, à qual as pessoas acham mais piada”.


E esta é uma das particularidades da coleção de João Ramos. Não se limita a exibir computadores Spectrum com pequenas diferenças. Abrange toda a história da Sinclair, os produtos da marca que antecederam o famoso micro-computador, calculadoras, rádios, televisões de bolso, computadores criados por ex-funcionários da empresa, clones fabricados em diversos países, Spectrums construídos em casa com teclados de máquina de escrever, diversos modelos Timex (que em meados de 80 licenciou os produtos da Sinclair e podia fabricá-los para outros mercados, como o americano ou o argentino, sendo a sua principal fábrica europeia localizada em Portugal), livros e revistas da época, imensos periféricos, até os mais excêntricos gadgets da empresa britânica, o já referido C5, o SeaScooter ZS91 - um propulsor individual de mergulho - ou uma bicicleta desdobrável, a Sinclair A-bike. Todo esse espólio reside agora no Museu da Pedra, em Cantanhede, onde permanecerá até ao fim do ano. 


No dia em que João inaugurou a exposição, 27 de Abril, passou a manhã a preparar os slides da apresentação, mas sentia que faltava algo, uma história engraçada para encerrar com chave de ouro. Resolveu fazer uma pausa, saiu para o exterior, puxou do telemóvel e consultou o Facebook. Viu algo que o deixou estupefacto. “Apareceu-me aquela cena das memórias, a avisar que fazia nesse dia seis anos que tinha encontrado o Spectrum na feira das velharias e decidido dar inicio à coleção”.

Foto: Catarina Gralheiro

O evento teve ampla cobertura mediática, apareceram amigos de infância que João não via há anos, mas com quem tinha partilhado “imensas jogatanas”, apareceram pessoas de fora da cidade, do distrito, da região. A 90 quilómetros de distância, João Carlos Silva, um advogado portuense, conduzia pelas ruas de São João da Madeira quando ouviu a entrevista em direto que a TSF estava a fazer ao autor da exposição. Travou, estacionou o carro. Há 36 anos que tinha o seu velho Spectrum 48K arrumado numa caixa de cartão. Já nem sabia das cassetes dos jogos que tanta companhia lhe tinham feito na infância, como o “Pole Position” ou o “Deos ex Machina”, mas não tinha coragem de o deitar fora. “Seria como abandonar um amigo e uma boa recordação da juventude”, pensava, sempre que deparava com a caixa de um azul desbotado pelas décadas. Virou-se para a esposa e disse: “Olha, daqui a Cantanhede são 45 minutos, vamos lá ver a exposição e eu aproveito para oferecer o meu aparelho, assim não vai para o lixo e fica em companhia de outros”. Ao mesmo tempo, pensou para si: “No fundo, ele vai ficar vivo para sempre e em boa companhia”.

Foto: Catarina Gralheiro

Quando foi abordado pelo entusiasmado doador, João não queria acreditar. “Ainda tinha o manual em português e o documento da garantia, com o carimbo da Papelaria Fidélia, no Porto, onde tinha sido comprado”.
Este fenómeno sociológico em torno do Spectrum é muito comum e está bem enraizado em território nacional e europeu. Não é só nostalgia, é nostalgia abraçada a amizades que se perpetuaram no tempo, abraçada ao período dourado que é a infância, que Rilke apelidava de “arca do tesouro” nas suas “Cartas a um Jovem Poeta”. 

As pessoas fazem centenas de quilómetros ou compram bilhetes de avião para marcar presença . Há línguas de todas as nações no espaço da Load “”. Debatem a forma como destruíam teclados com jogos de atletismo como Daley Thompson's Decathlon, que requeriam que se carregasse freneticamente nas teclas. Ou os “gráficos fenomenais” do Robocop. Ou até a “simplicidade viciante” de High Noon, um jogo de duelos entre pistoleiros no velho oeste. João costuma ter esse jogo disponível entre os vários que estão na banca com quatro Spectrums onde os visitantes podem matar saudades. Um dia, recebeu a visita de um amigo que lhe confessou que ainda jogava High Noon com os amigos e com apostas a dinheiro. “Afinal há mais malucos como eu”, afirma, a rir.


No entanto, o item em exposição mais precioso é o entusiasmo apaixonado com que João, quando está presente no espaço, relata episódios ou partilha curiosidade sobre o Spectrum e a Sinclair, desde o motivo do nome e do logótipo – foi o primeiro microcomputador da marca a produzir imagens com cores – às rádios pirata que transmitiam jogos Spectrum durante a madrugada, para quem os quisesse gravar. 
“Ainda eram caros, cerca de 200 escudos por cada cassete não era?”, alguém pergunta. “Sim, mas não te esqueças que  99% dos jogos que se comercializavam em Portugal, apesar de se venderem em lojas, terem capas a cores e legendas, eram pura pirataria”, afirma João. Perante algum espanto geral, o colecionador prossegue: “Cheguei a ver uma loja de informática em Cascais, com paredes toda ocupadas com gravadores profissionais de cassetes para os duplicar em série”, elucida, enquanto mostra o aspeto de um genuíno jogo original, em destaque numa das vitrinas da exposição.

Apesar de toda a atenção que tem recebido, João sente que a sua aventura do colecionismo ainda vai no início. Complementou esta exposição com uma presença na seção de gaming da Expofacic e até criou uma plataforma online de colecionismo, a Collectors Bridge. No entanto, tem a sensação que há ainda algo mais pela frente, como se fosse um jogo em processo de carregamento. O jogo que mais ambiciona jogar: Ter o seu próprio museu dedicado ao Spectrum e torná-lo numa atração turística. 

Foto: Catarina Gralheiro

“Há alguns museus dedicados à Apple na Europa, como em Cáceres ou Praga. Mas do Spectrum, que é a Apple do seu tempo pelas sensações que provocou e ainda continua a provocar em nós, europeus, ainda não há nenhum, nem na cidade onde ele nasceu,  Cambrigde”.  Explica que nessa cidade universitária britânica, onde estava sediada a Sinclair, há um museu dedicado à computação, o Centre for Computing History, que inclui alguns exemplares Spectrum, mas cujo espólio é genérico e abrangente. “A minha coleção Geração Spectrum é especializada, permite-me focar nas coisas mais estranhas que aparecem deste nicho e é isso que a torna única. Qualquer outra cidade pode construir um polo de atração à volta deste tema, que faz viajar tantos fans, colecionadores e curiosos”.

João imagina-se nesse futuro espaço, a organizar workshops, tertúlias entre muitos outros eventos de um “extenso plano de atividades” para trazer, de forma continuada, visitantes ao museu.  Até já idealizou estratégias para envolver o guru da Sinclair - Sir Clive Sinclair - e a Timex, pela “relevância histórica nesta temática, fortemente associada a Portugal”.


“Um museu que seja peça central de encontro de gentes ligadas ou curiosas por este tema, mas também um pólo de atração turística a uma qualquer cidade que se queira afirmar neste domínio”, afirma, salientando a oportunidade de criar uma “marca turística” que ficará para sempre associada à cidade que abrace o projeto. “É uma área de nicho, mas estamos a falar de tecnologia, algo que se tornou ubíquo nas nossas vidas e que por isso afeta ou interessa de alguma forma a todos”, refere. “Um museu que, a estar associado a mim, parece-me só fazer sentido na minha região, que é o Centro de Portugal”.


João faz uma pausa, a sua mente regressa novamente aos anos 80, aos filmes de Kung Fu com o mítico Bruce Lee. “Ele tinha uma filosofia onde defendia que ter o conhecimento não era suficiente, era preciso aplicá-lo. Transportando essa máxima para este tema, ter os objetos guardados em casa não me chega, é preciso fazer algo com eles, neste caso colocá-los ao serviço da comunidade”, diz, complementando de seguida: “Há já muito tempo que deixei de ver esta coleção como apenas minha, mas sim como tendo a responsabilidade de preservar este pedaço de história da computação que para a minha vida foi tão importante”.



Não esconde essa ambição de criar o primeiro Museu dedicado ao ZX Spectrum no mundo e está convicto que vai materializá-la no Centro de Portugal. Volta a imaginar as riscas horizontais. Conhece-as bem, sabe que são temporárias. Sorri, tranquilo. “O jogo vai carregar”.


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