Anabela Martins entrou na sala dos pequenos-almoços e sorriu ao ver o espaço ensolarado. Após uma noite de tempestade e trovoada, a manhã estava límpida e luminosa. “Depois da tempestade vem a bonança”, pensou, enquanto pousava a travessa e enchia a mesa de fruta, queijos, torradas, compotas, framboesas e outros produtos frescos da região. No entanto, eram 10:30 e os hóspedes não apareciam. Questionou-se se estaria tudo bem. Era a primeira noite tempestuosa que alguém passava na bolha, uma inovadora e original unidade de alojamento em Penamacor, no empreendimento Moinho do Maneio. Uma tenda esférica insuflada de ar, com frente e teto completamente transparentes, com vista desafogada para o céu. O suspense perdurou alguns minutos. “Deverei ir lá averiguar?”, equacionou Anabela. Uma porta abriu-se, a brisa da montanha inundou a sala e esclareceu a anfitriã. Era o casal da bolha, ambos com um sorriso desmesurado nos rostos. Tinham ficado acordados até quase de madrugada, a assistir, entusiasmados e assombrados, ao espetáculo alucinante no céu. “Foi uma experiência única”, disseram. Anabela sorriu com a palavra. Era-lhe familiar. Já ouvira “indescritível”, “espetacular”, “fantástica”, “excecional”, “mágica”, entre muitas outras expressões a descrever a experiência. Mas “única” era a mais frequente, a mais repetida. E talvez a mais ajustada. De facto, esta é a única bolha onde se pode passar a noite em Portugal. Há toda uma história e um percurso atrás da sua implementação. Essa história e esse percurso, iniciaram-se da forma mais habitual: Uma decisão de mudar de vida.
Anabela Martins (47) e Rui Marcelo (46) eram um casal lisboeta com muitas coisas em comum. A profissão era díspar, ela era engenheira de minas e ele jornalista, mas o resto alinhava-se. Ambos tinham raízes familiares em Penamacor. Ambos tinham adotado Lisboa como destino académico e profissional. E ambos tinham decidido, vinte anos volvidos, que já estava na hora de abandonar a capital. “A nossa vida era casa-trabalho, trabalho-casa, não tínhamos tempo para usufruir do que Lisboa nos podia oferecer”, recorda Anabela. Esse tempo e esse usufruto, obtinham-no quando visitavam a sua terra, especialmente uma velha quinta, abandonada há décadas, que pertencia à família de Rui. “Entretínhamo-nos a fazer jardinagem”. O convívio no espaço, rodeado por natureza e absoluta tranquilidade, inspirava-os. Almoços ao ar-livre, mergulhos na ribeira que corre ao lado da propriedade, tardes a ler embalados pelo som do vento nas árvores. “Ganhámos uma paixão pela qualidade de vida”. Depois de a saborear, rapidamente concluíram que não iam viver sem ela. O plano surgiu com naturalidade. Iam tornar a propriedade na sua casa e, simultaneamente, num empreendimento turístico. Começaram a fazer reparações aos poucos. Fins-de-semana, pontes, férias.
Foto: Moinho do Maneio |
Foto: Moinho do Maneio |
Na Primavera de 2008, após muitas obras, dois palheiros foram transformados na "Casa da Pipa" e na "Quarto das Andorinhas". O investimento não ficou por aí. Com o passar dos anos, outros compartimentos agrícolas deram origem ao “Quarto do Trigo”, à “Casa do Alecrim” e ao “Quarto do Amieiro. Todos os espaços estão construídos em xisto e estão recheados de charme rústico e criatividade. “São tudo ideias nossas, desde a construção à decoração”, diz Anabela. Essa veia criativa está bem patente no interior das casas, todas com imensos detalhes onde interligam originalidade com genuinidade. O antigo funil do lagar transformou-se num candeeiro, uma enxada num cabide, uma máquina de costura numa mesa e uma enorme pipa de vinho numa banheira. “Gostamos de dar uso aos utensílios antigos da quinta, para manter a genuinidade e identidade da região”.
Nos quartos, há até cobertores genuínos de papa, mantas artesanais de lã churra de ovelha - “é mais comprida e macia”, sublinha Anabela - feitas pelos avós do casal, “uma tradição muito antiga e emblemática na região”.
Junto à propriedade, estão as ruínas de um moinho secular, que serviu de inspiração para batizar o empreendimento: Moinho do Maneio. No futuro, o casal pretende recuperar esse espaço e meter as suas mós a moer novamente o trigo, o milho e o centeio. Para além de usarem parte da estrutura como unidade extra de alojamento, querem propiciar experiências aos hóspedes, como fazer pão, vivenciando todos os seus processos. Não apontam datas, nem têm dúvidas, o velho moinho voltará a ter vida. “Queremos muito recuperar a memória, as vivências de outros tempos. Mais cedo ou mais tarde, ele vai voltar a funcionar!”.
Paralelamente à atividade turística, o casal resolveu também apostar na agricultura. Criaram uma plantação de framboesa, cujos frutos comercializam num cabaz típico destinado a empresas, recheado com outros produtos regionais. Produzem também licor de framboesa, com o qual dão as boas-vindas aos hóspedes. Nos pequenos-almoços, há sumo de framboesa. O fruto tornou-se numa imagem de marca do empreendimento.“Temos um casal habitual, cujos filhos até já nos tratam por tios e sempre que veem framboesa no super-mercado, perguntam de imediato: quando vamos à casa da Tia Anabela?”.
Foto: Moinho do Maneio |
Muito antes de surgir a ideia da bolha, há duas características diferenciadoras que se enraizaram no quotidiano do Moinho do Maneio. A primeira é a forma harmoniosa como inúmeros animais convivem nos espaços verdes do sítio. Há cães, gatos e até um casal de burros, o Jericó e a Julieta, que este ano tiveram um filhote, o Micas. “São animais dóceis e muito sociáveis e as crianças adoram-nos”, afirma Anabela. “Esse contacto é também pedagógico, há miúdos que têm medo de animais e perdem-no aqui, apercebem-se do quanto são inofensivos”. Anabela sorri antes de prosseguir e o sorriso transforma-se em gargalhada. “Temos um casal de Torres Vedras que vem muitas vezes visitar o Jericó. O filho tem cinco anos e, na primeira visita, regressou a chorar porque queria levá-lo para casa”.
A segunda, é a “motivação” que os hospedes têm para conviver à maneira antiga. Nas casas e quartos do Moinho do Maneio não há televisão nem internet. “Em vez de rede wi-fi temos redes nas árvores”, afirma Anabela, sorridente. A aposta – ponderada e deliberada – funcionou. “As pessoas estranham no início, mas depois agradecem sempre”. Há casais com filhos que já não recordavam um jantar em família a conversar; há crianças que brincam juntas em vez de se entreterem com tablets; há pessoas que voltam a sentir, após muitos anos, o significado da expressão “não incomodar”. “Aqui as pessoas são obrigadas a desligar. Não há chamadas de última hora ou e-mails que precisam de ser respondidos. O telemóvel é um objeto obsoleto no Moinho do Maneio”.
Para além do ambiente propício ao diálogo, nos armários das casas há jogos de tabuleiro, cartas, dominó. “Até um jogo de estratégia baseado na atividade de contrabando que existia nesta região”.
Apesar da atmosfera bucólica, o casal não deixa que tranquilo rime com aborrecido. Organizam com frequência atividades no espaço. Noites de fado, sevilhanas, observação astronómica, reiki, reflexologia ou massagens. Há uma piscina, nas margens da ribeira há canoas e até um enorme trampolim.
Anabela e Rui estão sempre a debater novas ideias. Há anos que idealizavam uma espécie de casa da árvore, com um teto envidraçado, onde os clientes pudessem adormecer a observar as estrelas. O plano foi sendo adiado, até que em inícios de 2016 foram à Feira Internacional de Turismo (Fitur) em Madrid. Foi lá que viram a bolha pela primeira vez. “Ficámos fascinados, era uma materialização inovadora do que tínhamos idealizado”, relembra Anabela. Era uma quinta-feira. Na segunda, a bolha estava encomendada. Nessa mesma semana, chegava a Penamacor.
Todas as boas ideias, antes de serem implementadas, são atormentadas por peripécias. A bolha não foi exceção. Quando chegaram as mil águas de Abril, o casal constatou que o modelo estava defeituoso. “Deixava entrar água lá dentro”. Devolveram-na e receberam uma bolha temporária de substituição de uma cor que não se misturava de forma tão harmoniosa na envolvência natural como tinham planeado. “Era cor-de-rosa, via-se a léguas”, diz Anabela, a rir. No final desse ano, chegou a bolha definitiva. E tudo mudou no Moinho do Maneio.
Foto: Moinho do Maneio |
A primeira avalanche fez-sentir pelo ‘passa-palavra’. “Sempre que alguém dormia lá, passado uma ou duas semanas vinham os amigos”. Depois foi a comunicação social, que debruçou a sua curiosidade sobre o empreendimento turístico que decidiu meter clientes a dormir numa bolha insuflável. Depois apareciam aqueles que que viam as imagens nas redes sociais. Outros, visitavam o sítio e decidiam espontaneamente que “iam ter de dormir ali”. A taxa de ocupação da bolha foi subindo e hoje ronda os 100% nos meses de Verão. “Mesmo na Primavera, os sábados esgotam logo”, afirma Anabela. Três anos volvidos, recorda com um largo sorriso o “feliz dia” em que decidiram avançar com a aposta arrojada. “Se eu gastasse em publicidade o que gastei na bolha, não tinham um quinto da visibilidade”.
Para além de portugueses e muitos espanhóis, a bolha já atraiu gente de todo o mundo. Norte-americanos, chineses, ingleses, holandeses, belgas, israelitas, australianos. Um fascínio que não se limita a derrubar fronteiras. Anabela considera-o intemporal. “Acho que desde pequeninos todos temos um encanto especial pelas estrelas, os velhos sonhos de ser astronautas e explorar o espaço”. Na mesa de cabeceira da cama está um livro, "Roteiro do Céu", com dicas úteis para reconhecer constelações. Anabela acrescenta mais algumas: “Desliguem as todas as luzes e deixem-se deslumbrar, seja com o brilho da Ursa Maior ou com a lua a aparecer atrás das árvores”.
A bolha está assente numa plataforma de madeira, rodeada por copas de árvores e com vista para a Ribeira do Bazágueda. A privacidade é total. Está situada num dos recantos da propriedade e para lá chegar é preciso seguir um carreiro, que tem um pequeno sinal de “trânsito proibido” sempre que ela está reservada.
Foto: Moinho do Maneio |