2 de março de 2018

Turismo experiencial (des)tranca portas no Centro (Capítulo V)


Os escape rooms são uma atividade de turismo experiencial em expansão em Portugal. O desígnio é simples: Cinco pessoas são trancadas numa sala e têm 60 minutos para escapar. Para conseguir, vão ter de seguir várias pistas, aceder a passagens secretas, desvendar enigmas e, acima de tudo, trabalhar em equipa. É uma experiência completamente imersiva, as salas são temáticas e têm uma narrativa específica que cria uma atmosfera que envolve os participantes. Turistas, grupos de amigos, famílias, festas de aniversário, despedidas de solteiro(a) e eventos de team bulding para empresas, os públicos são muito diversificados. São vários os espaços em actividade na zona Centro do país. Por trás de cada escape room há um empreendedor que se apaixonou pela actividade e decidiu arriscar. Destrancaram-nos as suas portas e partilharam connosco as suas motivações, lutas e desígnios por trás de um investimento. Chamam-lhes Game Masters. Estas são as suas histórias.


Mysterio
Sala: “Vultus 2”
Website: Mysterio

Durante a noite, um jornalista de investigação entra num antigo colégio interno abandonado em Tomar. O som cadenciado dos ponteiros do relógio mistura-se com o seu batimento cardíaco, enquanto percorre as dezenas de salas escuras e corredores tenebrosos em busca de pistas para desvendar um mistério. 
O jornalista é uma equipa de um a seis participantes que aceite o repto lançado pelo “Vultos 2”: Sobreviver 60 minutos num espaço aterrador. Ninguém sabe o que vai encontrar lá dentro, mas uma certeza é garantida. Não vão estar sozinhos.

“O nosso evento não é um escape room em si, mas mais uma fusão de teatro imersivo de ação e terror que inclui alguns puzzles e enigmas a resolver”, esclarece de imediato Leonel Alves (34), presidente e diretor criativo da associação “Panóplia de Mistérios”, que organiza o evento.
No entanto, mantém-se muitos dos padrões dos escape rooms. É preciso trabalho de equipa para desvendar os mistérios e há 60 minutos para conseguir sair. A grande diferença é que, em vez de uma sala, vão ter de escapar de um edifício inteiro, na escuridão, com milhares de quilómetros quadrados para serem explorados. “E tudo isto enquanto são perseguidos por algo ameaçador”. Leonel frisa a palavra “algo”. Dá-lhe uma acentuação enigmática, algo sombria, ligeiramente clareada por um sorriso mudo, que parece dizer: “O resto é para descobrir e viver lá dentro”.


E têm sido muitas as descobertas. Centenas, quase milhares. As sessões esgotam com duas a três semanas de antecedência e muitos dos participantes rumam a Tomar de propósito. “Cerca de 70 por centro do nosso público vem de fora”, afirma Leonel, acrescentando que a maior fatia engloba grupos de amigos entre os 18 e os 40 anos. 

Como tudo começou? Se Leonel tivesse de assinalar uma origem, não colocaria uma cruz no dia em que fundou a sua associação, nem no dia em que firmou um acordo com a Câmara Municipal para a cedência do antigo Colégio Nun´Alvares.
Não. Leonel recuaria até uma longínqua tarde de Inverno nos anos 90, trancado no quarto a jogar “Resident Evil” na Playstation. 
Relembra, com nostalgia, esses momentos a tentar “sobreviver” numa antiga mansão perante um exército de mortos vivos, monstros e enigmas misteriosos. “Esse jogo fez-me sentir na pele o que seria sobreviver a um pesadelo real”, afirma. Lutar sob pressão e com poucos recursos, ao mesmo tempo que tinha que raciocinar. “Pareceu-me uma experiência excecional e única se a conseguisse materializar no mundo real, mas pensava que seria impossível”.

No entanto, após “20 anos de fabulações e imaginações”, Leonel viu escape rooms a nascer e eventos de terror a roçar o realismo. 
Decidiu fazer uma primeira experiência, “em tom de brincadeira”, com a ajuda da família e amigos. Apareceram cerca de 100 pessoas de todo o país. Apercebeu-se que podia fazer algo mais sério e profissional. “Alguns anos e muitas reviravoltas na vida depois, decidi tirar esse sonho da gaveta”. No Verão passado, surgia o “Vultos”.
O processo organizativo foi longo e árduo. “O facto de não haver nada semelhante em Portugal, nem legislação concreta foi o mais complicado”, afirma. Dispara logo de seguida: “Quando não há manual de instruções temos que ser nós a criá-lo”. Após todo esse processo, surgiu um outro obstáculo, talvez o derradeiro obstáculo: “Explicar a entidades e parceiros o que era este tipo de evento sem pensarem que eu era louco ou sádico”.
Uma barreira que, felizmente, a Câmara Municipal de Tomar superou facilmente: “Cederam-nos um colégio desativado enorme que está prestes a ser remodelado, sendo exatamente o que procurava por ter um aspeto antigo e algumas zonas degradadas”. 

Contrariamente ao que se poderia pensar, Leonel não vê filmes de terror e nunca foi a um escape room. “Ainda não existiam em Portugal quando comecei a pensar nestes projetos. Para além disso, sou autodidata, gosto de inventar eu as coisas”, afirma.
Em relação aos filmes, a resposta é simples: "Vi alguns quando era adolescente, mas nunca sozinho”, refere, antes de soltar uma sonora gargalhada. “Sempre fui medricas e tenho que admitir que sou uma pessoa que acredita no paranormal e que o teme”.
Confessa que os poucos filmes que vê dentro do género - como “Saw” ou “Insidious” - é para “estudar cenários”, mas, sublinha, “sempre acompanhado”.
Embora a deixe quase sempre encostada, nunca fechou a porta dessa fronteira que o liga aos universos que o aterrorizam. Inclusivamente, desenha e confeciona fatos de monstros que exporta maioritariamente para os EUA.
“Esse meu contato com o medo dá-me as ferramentas psicológicas para saber o que realmente assusta as pessoas”.


O facto da ação de “Vultos 2” decorrer num colégio interno que recebia estrangeiros e tinha fama de manter um ambiente bastante rígido ajudou na decisão. “Não há melhor cenário que um local real, especialmente quando a atmosfera do local já é assustadora”.
O tema escolhido remete para um filme de terror onde um psicopata rapta pessoas e leva-as para um edifício abandonado. “Combina o medo psicológico do desconhecido e paranormal, com o medo de sofrer fisicamente”, afirma Leonel. “Basicamente, no nosso evento, cada participante vive o seu próprio filme de terror em primeira mão”. 

Leonel frisa ainda a extrema dificuldade do evento. “Apenas dez por centro dos grupos consegue resolver os enigmas todos antes do tempo”. Faz uma pausa, como se aguardasse a pergunta óbvia, mas antecede-a: “Existem MUITAS coisas a acontecer para além dos enigmas”.
Logisticamente, houve imenso a fazer. A equipa remodelou algumas zonas, colocou detritos falsos, algumas luzes e sons em locais-chave e criou enigmas “rudimentares” em sintonia com o ambiente, “como se fosse mesmo um psicopata a criá-los”. “Nada de caveiras nem músicas de Halloween!”, assegura.
“Levamos o realismo muito a sério, não procuramos sustos fáceis e sim suspense e opressão psicológica constante”.


Confidencia que naquele colégio abandonado já houve ataques de pânico, desmaios, choros, pessoas a querem arrombar portas ou saltar através de janelas para fugir”. Esboça um longo sorriso e diz: “Mas no fim todos saem com um grande sorriso de alívio e tão divertidos que ainda dão sugestões para tornar o evento ainda mais aterrador numa próxima edição”.
A presente edição termina no final de Março. Posteriormente, Leonel promete novidades. “A terceira edição será completamente diferente, muito mais estranha e desafiante”. 
Nessa altura, já poderá entrar investimento exterior. “Fundámos a nossa Associação sem fins lucrativos exclusivamente para este tipo de projetos. Os custos são elevados e é uma atividade arriscada financeiramente”. Refere ainda que “Vultos 2” depende de pessoas com “aptidões muito especiais”. “O entusiasmo e a paixão para criar algo impactante e de alta-qualidade é o que move a minha equipa incansável”.

Leonel sublinha ainda a importância de manter “integralmente o controlo criativo” e afirma que toda a receita das bilheteiras serve para “manter e melhorar o evento”. Afirma que já existem planos para levar o conceito a “outro nível”, sendo que esse passo evolutivo já vai requerer “apoios, fundos e mentoring”.
Leonel altera a expressão. Mais uma vez, o semblante enigmático. “Temos grandes planos para 2018-20”.

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