O Posto Fiscal das Memórias não Declaradas
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4 de novembro de 2020
Reportagens: Ruínas por Empreender
O Posto Fiscal das Memórias não Declaradas
12 de outubro de 2020
O posto fiscal das memórias não declaradas
Manuel Conceição só usou a sua espingarda uma vez. Era de noite e o luar permitiu-lhe vislumbrar uma silhueta suspeita entre os arbustos. Apertou o gatilho, com o cano virado para o ar. O contrabandista ergueu os braços, largou a mochila e fugiu. Manuel aproximou-se dela e quando a abriu não ficou surpreendido. Algumas ferramentas e utensílios de cozinha, o normal.
Regressou ao seu Posto Fiscal e ao seu plantão. Hasteou a bandeira ao amanhecer, como em tantas outras manhãs de 1960, envolto num bucólico silêncio e na vista deslumbrante do topo da sua colina para as águas do Tejo internacional, que ondulavam entre montanhas portuguesas e espanholas.
Cumprimentou o colega do turno seguinte e caminhou para casa. Passos firmes, passos de sentimento de dever cumprido. A sua aldeia, Perais, ainda ficava longe, a quase a cinco quilómetros. Longe estavam também os 35 anos em que aquela rígida linha invisível que se tonara a sua vida deixaria de existir. Na altura, era impensável. E também não lhe passava pelo pensamento que o seu imaculado posto estaria anos e anos em ruínas até, um dia, surgir a oportunidade de o converter num empreendimento turístico. E muito menos que seria a sua esposa de sempre a sobreviver-lhe e a partilhar as memórias e o legado do seu Monte Fidalgo.
O falecido marido, Manuel Conceição, foi guarda fiscal neste posto de 1958 a 1962. “Ele fazia dois turnos diários de quatro horas, um de dia e um de noite”. De 12 em 12 dias, ficava de plantão, ou seja, permanecia no posto 24 horas seguidas. “Era das 8 da manhã até às 8 do dia seguinte”. Esses eram os dias mais solitários para ambos. Lídia não ficava com o marido no posto, era proibido. Mas ia lá todos os dias levar-lhe o almoço. “Ia a pé de mochila às costas, com o pequenito ao colo”, relembra, com olhos húmidos. “Ainda era um bocadinho longe, mas quando a gente é nova nada cansa”. O farnel era variado. Pão, chouriço, carne estufada, bacalhau, salada de feijão. “Graças a Deus, ele gostava de tudo”.
Nesses tempos, o contrabando era uma prática muito comum na zona. Era tolerada, era quotidiana. As populações locais viam-na como um meio de subsistência. Havia produtos que escasseavam em ambos os lados da fronteira. Os espanhóis desejavam o nosso café, a nossa farinha, a nossa amêndoa. Já nós, desejávamos ferramentas, utensílios de cozinha, tabaco e pequenos itens que eram novidade aos olhos de cá, como isqueiros, perfumes, caixas de joias. Pagar o imposto alfandegário tornava incomportáveis esses desejos, por isso pessoas de todas as idades “faziam-se ao caminho” e arriscavam-se nas matas, montanhas e rios com sacos de 20 ou 30 quilos às costas, tentando passar despercebidos aos carabineiros, do lado de lá, e a homens como o Manuel do lado de cá.
“Ele gostava do que fazia. Isto aqui era tranquilo, as pessoas iam comprar umas coisitas lá ao outro lado, mas não era nada de perigoso”. O que custava mais era a solidão. Por vezes, Lídia jantava com ele na pequena cozinha do posto. “Cedo, para conseguir regressar a casa antes de ser de noite”. Ouviam rádio, sentiam o conforto da lareira, diziam “até amanhã” e Manel regressava à companhia da sua espingarda e da encantadora paisagem que o cercava, igualmente bela ao luar como ao sol.
Os encantos deste sítio eram tantos que até o visitavam em momentos de folga. Por vezes à tarde, onde Lídia se recostava e ficava a observar Manuel a pescar barbos e bogas com uma tarrafa. Por vezes à noite. “No verão, quando era mais quente, vínhamos cá, descíamos ao rio, estendíamos uma manta na areia e dormíamos ao relento. Nós dois e o pequenito, junto ao rio”.
Passos que cessam, um assoalho que deixou de ranger. Encontro Lídia parada no meio de uma ampla divisão, rodeada por paredes brancas, rodapés azul-cinza e memórias invisíveis aos meus olhos. “Aqui aconteceu uma das maiores surpresas da minha vida”.
Como em tantas outras noites em que Manuel estava de plantão, Lídia foi-lhe levar o jantar. Levou bacalhau, era véspera de Natal. “E era também o dia em que eu fazia 27 anos”, acrescenta, com um sorriso. Quando entrou, viu duas camas de solteiro da camarata encostadas uma à outra. “Hoje dormindes cá”.
Acompanho-a até à janela que se abre para o Tejo e por onde o seu olhar sorri enquanto confessa: “Olhe nem dormi a noite toda, cheia de medo que o comandante aparecesse cá a fazer a ronda e nos apanhasse”.
Deixo-me ficar mais uns instantes junto a essa janela sem vidros por onde espreitam o passado, o presente e o futuro. Olho para as montanhas revestidas de verde e para as águas tranquilas do rio. “Quem contemplará tudo isto um dia?”, penso.
É com o objetivo de estimular a recuperação de imóveis públicos devolutos como este, recheados de potencial turístico devido à sua localização idílica, ao seu património natural e ao seu legado histórico, que a Turismo Fundos criou o Fundo Revive Natura em 2019.
O fundo visa transformar estas ruínas cheias de histórias em oportunidades de investimento turístico. “Tem como objetivo a requalificação e a valorização dos imóveis, compatibilizando a conservação, recuperação e salvaguarda dos valores em causa com novas utilizações, que beneficiem as comunidades locais, atraiam novos visitantes e fixem novos residentes”.
Há, presentemente, 16 imóveis disponíveis para concurso (o prazo para concorrer é até 19 deste mês), sete dos quais na Região Centro.
Os antigos postos fiscais de São Pedro de Moel, Quiaios, São Jacinto, Alares e Malpica do Tejo. A antiga Sede da Administração Florestal na Figueira da Foz. E o antigo Posto Fiscal de Monte Fidalgo.
O monte tem um pequeno planalto, em frente aos dois edifícios, com vista desafogada para o rio e para o vale. Quantas vezes se terá perdido naquela fronteira líquida o olhar de Manuel? Quantas horas, quantos anos? É lá que se encontra Lídia. Em vez de uma espingarda ao ombro, tem um guarda-chuva aberto, que a protege do calor tórrido de outubro. “Aqui o verão dura mais tempo”.
Restam as recordações, que se tornaram quotidianas. A farda cinzenta do marido, hoje usa-a na apanha da azeitona. “O tecido é fresco e liso, não pega lá nada”. Uma medalha, ofereceu-a ao Núcleo Museológico do Contrabando, em Perais, onde é contemplada todos os dias pelos visitantes. As fotografias a preto e branco testemunham a vida a três que existia até só passar a existir ela. Mas todas as existências, tal como as memórias do seu Monte Fidalgo, caminham consigo para todo o lado.
A nossa nova rubrica de reportagens: Ruinas por Empreender
São espaços despidos de vida, mas que guardam histórias e/ou memórias de quotidianos de outrora e que possuem valências a nível patrimonial, arquitetónico, cultural ou paisagístico, passiveis de requalificação e potencialização.
Em alguns casos, estes imóveis escondem um passado auspicioso, que será contextualizado com a decadência do presente e o ponto de interrogação promissor que envolve o seu futuro.
A rubrica visa dar a conhecer e promover novas oportunidades de investimento no sector turístico da Região Centro de Portugal.
(Foto: Autocaravanista.pt)
9 de outubro de 2020
Felicidade movida a energia solar
São 11 da manhã quando subo a bordo. O céu está coberto de nuvens, há um vento ligeiro que sopra de sudoeste, mas a água está calma. Não há ondas, não estamos no mar, a única ondulação é um ligeiro borbulhar na água quando é sulcada pelo casco vermelho do Gaivinha, que significa “andorinha-do-mar” em latim. É também o único som. O barco, movido a energia solar, é incrivelmente silencioso e enquanto navega na Ria de Aveiro propicia uma esplêndida sensação de paz e relaxamento que se apodera de todos os sentidos. Trata-se de uma experiência turística. Uma experiência que nasceu de uma promessa entre um homem e uma mulher.
Aconteceu em 2015. Estevão Castro fez um acordo em jeito de promessa com Sandra Oliveira. “Quando tivermos 55 anos vamos montar um negócio só nosso, algo ligado à Ria de Aveiro. A nossa Ria de Aveiro”. Ela contemplou-o e sorriu. “Sim, agrada-me a ideia de terminar os dias com os pés na água”.
E a vida de ambos estava ligada à água. Quando era pequeno e passava a Ponte da Praia da Barra, Estevão olhava, fascinado, para as ilhas na ria. “Como é que se vai para ali? Eu quero ir para ali!”. Os anos passaram e o seu fascínio pela ria transbordou para a cumplicidade. “Transmite-me calma, paz interior. É o meu espaço de reflexão”.
No início do ano, elaboraram um minucioso plano de negócios; estimaram o número diário de viagens, a lotação do barco, o preço médio por pessoa, entre muitas outras contas. A confiança no potencial do empreendimento saiu ainda mais reforçada. “Só se entretanto houver uma terceira guerra mundial é que isto não vai funcionar”, disse, na altura, Estevão a Sandra.
Entretanto, as nuvens começaram a abrir e já se vislumbram algumas manchas de azul no céu. Vamos percorrendo tranquilamente os canais da Ria, que é muito mais extensa do que imaginamos. Ao todo, tem 45 quilómetros de extensão e 11 de largura, recheados de beleza natural e biodiversidade. À medida que navegamos vamos deparando com inúmeras ramificações que se desdobram em possibilidades de descoberta e exploração. “Os canais da ria eram as verdadeiras estradas da época pois abrangiam vários concelhos do distrito de Aveiro e Coimbra” refere Sandra.
Após termos cruzado alguns canais, Estevão debruça o olhar para o ecrã da sonda, que lhe revela que estamos numa zona profunda da ria. “É aqui”, afirma, captando a atenção de todos. “Algures por aqui está afundado um galeão do século XVI”. Conta-nos que foi descoberto por dois mergulhadores (2009) e que se encontra parcialmente enterrado no lodo.
Observo-os. Sandra está sentada na proa, é a primeira a receber a brisa matinal; Estevão sorri por trás dos óculos escuros com que contempla o horizonte; o filho mais velho está compenetrado junto ao leme, um dia será um skiper; o mais novo está sempre a explorar os recantos do barco, a molhar as mãos na ria, a espreitar as aves ou a procurar o reconfortante colo da mãe. Alguns instantes depois, noto que a minha observação estava a ser observada. A empreendedora sorri e diz: “É o melhor escritório do mundo, não é?”.
8 de outubro de 2020
PROGRAMA PRE - Programa de Revitalização de Empresas
Vivemos tempos difíceis para os empresários da atividade turística. Os reflexos da crise provocada pela pandemia de covid-19 podem ser devastadores para a rentabilidade das suas empresas, pondo em causa a própria sobrevivência.
- Diagnóstico Empresarial e Linhas de ação gerais;
- Plano de recuperação económico-financeiro;
- Modelo de recuperação e acompanhamento;
6 de agosto de 2020
Um Mergulho na Natureza
Atravessamos a espessa vegetação, típica de uma floresta mediterrânica e que atenua parte do calor que se faz sentir nesta tarde de Verão numa serra em Mortágua. Ao nosso lado, o som da água da Ribeira das Paredes a escorrer pela montanha abaixo complementa a sensação refrescante.
Escalamos alguns rochedos e alcançamos uma espécie de banheira de rocha, esculpida pela passagem da água ao longo dos séculos. Um a um, entramos lá dentro.
A água parece estar fria, mas a pele, escudada pelos fatos de neoprene, apenas sente uma frescura suave, que se mistura de forma aprazível com os 33 graus que pairam no ar. O curso de água faz uma pequena curva e precipita-se numa cascata com seis metros de altura.
Tinha seis anos, já gostava de futebol e do outro lado do Atlântico jogava-se o mundial do México’86, mas nada disso importava. Só interessavam as noites a acampar, as manhãs a percorrer trilhos, a canoagem, o rappel, a escalada, o slide e os peddy papers, que o levavam a explorar as florestas ou as aldeias de xisto.
Era o primeiro campo de férias de João Ramos. Adorou a experiência, que se tornou uma rotina anual na Foz de Arouce, Lousã. “Passava o ano à espera desses 15 dias mágicos passados na natureza”. Após 12 anos consecutivos, tornou-se maior de idade e monitor. Depois, coordenador. Não muito depois, responsável pela organização e operacionalização de todo o campo de férias. “A minha grande paixão pelas atividades na natureza veio daí”.
Em Coimbra, 2002, havia 600 estudantes Erasmus. “E não havia nada minimamente estruturado”. João colou cartazes em todas as universidades a averiguar potenciais interessados. Reuniu com eles, instituiu o pagamento de quotas para angariar dinheiro para criar uma associação juvenil, pediu uma audiência ao reitor, que lhe cedeu uma sede no Departamento de Matemática e permitiu usar o nome da Universidade de Coimbra. Em 2003, nascia a Associação Socrates Erasmus.
Para além do apoio logístico nos primeiros dias dos estudantes, organizavam festas semanais, visitas pelo país, eventos temáticos. “No fundo, queria prolongar a minha vida de Erasmus”, confessa, com um sorriso. Em 2004, realizaram o primeiro encontro nacional de Erasmus (Coimbra, Montemor-o-Velho e Figueira da Foz). Em 2006 – Já João trabalhava na capital, numa multinacional na área comercial e de vendas – pedem-lhe ajuda para realizar o segundo encontro. João não recusou. “Desta vez foi na Costa Alentejana, com 350 pessoas. Festas na praia, até uma festa MTV no Castelo de Sines”.
Foto DNA (Rio Teixeira, São João da Serra) |
Profissionalmente, as coisas corriam-lhe bem. Mas João sentia que a qualidade de vida diminuía de ano para ano. “Chegava a fazer 13 ou 14 horas por dia. Mais uma hora de trânsito para cada lado ao passar a Ponte 25 de Abril”. Em 2008 disse basta. “Estava saturado, queria muito regressar a Coimbra, o Centro sempre me atraiu e fascinou”. Teria de sacrificar a sua área, pois a evolução da carreira passava por Lisboa ou Porto. “Tinha 28 anos e, se queria ir para a Região Centro, ia ter de encontrar o meu próprio caminho”.
A jornada empreendedora começou na restauração. No espaço de um ano, já tinha três restaurantes (Penela, Coimbra e Viseu). Alguns corriam bem, “outros nem por isso”. Em 2010, decidiu que esse não era ainda o caminho. “Deu-me muita aprendizagem, deu-me currículo, mas não guardo saudades. Não voltaria a ter um restaurante, garantidamente.”
Foto DNA (Ribeira das Paredes, Mortágua, Inverno) |
Nesse mesmo ano, experimenta a atividade de Canyoning no Rio Frade (Arouca), que envolve a descida de um rio de montanha por dentro de um desfiladeiro com recurso a técnicas como caminhada aquática, descida em rapel e saltos. João apaixonou-se pela atividade e, logo nessa tarde, começou a percecionar “a vertente e o posicionamento do negócio”.
No Verão, criou a DNA Travel and Events, uma empresa com sede na lousã, “pela ligação da infância à serra”, dedicada às atividades de turismo de ar livre: Pedestrianismo, escalada, espeleologia, rapel e Canyoning. Já passaram 10 anos e esta última continua a ser a sua preferida. “O contacto com a natureza, a água, a frescura, a adrenalina dos saltos. Costumo chamar-lhe: um mergulho na natureza”.
Foto DNA (Rio de Frades, Arouca) |
Um a um, os sete participantes saltam para a água. Eu sou o sétimo.
Segue-se uma descida em rapel numa cascata com 13 metros. Gonçalo Veríssimo, o monitor, prende o mosquetão ao meu arnês e dá-me as instruções. Refiro que já fiz rapel, mas ele sublinha na mesma todas as manobras. “Pernas afastadas, mão direita controla a descida”. Depois de assimilarmos as técnicas, o rapel deixa de ser uma atividade intimidante, pois apercebemo-nos que temos controlo total do que acontece. E se algo fugir do nosso controlo, há “uma rede de segurança”. Lá em baixo, João segura a corda e “faz a segurança”. “Basta esticar a corda e a pessoa não sai do sítio”, refere.
A descida inicia-se numa superfície de rocha lisa que se prolonga alguns metros, até se precipitar numa parede mais vertical, mas revestida de vegetação, o que aumenta a tração.
Do lado direito da cascata há dois troncos de árvore que tombaram e a acompanham até à lagoa. Estes oferecem um ar mais selvagem ao cenário e transformam-se num ponto de descanso para os mais afoitos.
É lá onde estão Sofia Silva (30) e Ricardo Briales (27). Ela tem descendência portuguesa e nasceu em França. Ele tem descendência espanhola e nasceu na África-do-Sul. Vivem juntos em Málaga há seis anos e decidiram vir passar as férias de Verão ao Centro de Portugal.
“É mais tranquilo e adoro a diversidade, temos cidades, natureza, aldeias apaixonantes, desporto, aventura”, diz Sofia. Já tiveram aulas de surf na Praia da Barra, em Ílhavo, e agora decidiram estrear-se no canyoning. “Estávamos com desejo de aventura e isto é perfeito, é divertido, tem adrenalina, é refrescante. É algo bonito de ser compartilhado, de ser experienciado em conjunto”.
A próxima paragem é na Serra da Estrela. “Queremos fazer trilhos e comer. Comer muito queijo da serra!”, afirma, num sorriso partilhado com Ricardo, que já se rendeu à nossa gastronomia: “Come-se muito bem cá, servem muito bem, isto é uma joia autêntica”. Nos próximos dias vão chegar alguns amigos de Espanha. “Vamos apresentar-lhes um pouco de tudo”, diz ela. “Vamos a conocer todas las caras del Centro de Portugal”, diz ele.
A alguns metros atrás, o som da cascata não impediu João de ouvir a expressão “desejo de aventura”. Mais tarde iria sugerir ao casal a atividade de espeleologia (exploração de grutas). “É um admirável mundo novo, partimos para outra dimensão, o silêncio é total e desligamos de tudo. Não é tanto um desafio físico, mas psicológico”. É uma atividade que a DNA organiza nas Grutas do Soprador do Carvalho (Penela), Algarinho (Penela) e Arrifana (Condeixa-a-nova).
João sorri e acrescenta que este curso de água foi, precisamente, a única fonte disponível do exército de napoleão, durante a retirada após a derrota na batalha do Bussaco (1810). “Durante a invasão, o exército anglo-luso recorreu à política de terra queimada, tudo o que estava no rumo do inimigo era queimado, os poços de água eram envenenados. Era uma forma de desgastar o exército francês. Após a batalha, estes tiveram de voltar a Mortágua, para recuperar os feridos, enterrar os mortos e encontrar um caminho para Sul. Houve alguém que lhes indicou a passagem de Boialvo, não cartografada, que os fez contornar a Norte toda a cordilheira da Serra do Bussaco. Nessa jornada, esta Ribeira das Paredes era o único ponto de água intacto”.
Explica-me que organiza também experiências de turismo militar, com visitas guiadas pela “mão do general Wellington” no local da célebre batalha. “Não estamos apenas a ver algo como num museu, estamos a caminhar pelo atual percurso onde se deu a batalha e podemos visualmente perceber toda a estratégia militar montada, com uma forte componente de storytelling”.
Acrescenta que organiza um “vasto número” deste tipo de experiências turísticas. A designação da empresa, DNA é uma sigla que significa “Desporto, Natureza e Aventura”, mas é também um trocadilho genético. “Fazemos sempre algo com identidade própria. Queremos diferenciar-nos por ter uma relação afetiva com os clientes e por criar experiências únicas, sempre em redor do imaginário e da construção de histórias”.
Há eventos como o “CSI na Quinta das Lágrimas”, onde é recriada a morte de Inês de Castro e os participantes têm de investigar tudo o que aconteceu; o “Enólogo por um dia”, em parceria com a Boas Quintas, onde os participantes têm de criar o seu próprio vinho. “No jantar há um concurso onde é eleito o melhor vinho, o melhor rótulo, o melhor nome e até o melhor slogan”; ou visitas a aldeia de xisto, onde os visitantes são recebidos por pastor serrano, desconhecendo que se trata de um ator que vai originar um conjunto de acontecimentos.
“Tudo isto sob uma lógica onde juntamos as quatro dimensões da sustentabilidade: componente ambiental, a social, a cultural - recuperar tradições e apoiar comunidades locais na promoção de recursos endógenos - e a económica, que gera um efeito multiplicador no território”, afirma João. “Há excursões com 50 pessoas que chegam, passeiam, metem-se no autocarro e vão embora, sem deixar valor no território”. Explica que a DNA renega essa tendência. “Há muitas coisas que até podíamos fazer autonomamente, mas preferimos subcontratar entidades locais e pequenas empresas para fazermos em parceria. Ganhamos todos”.
Foto DNA (Rio de Frades, Arouca) |
Mas, apesar de um pouco mais despida de água, a cascata continua imponente. Já passaram por aqui muitas histórias de superação. Pessoas que não acreditavam ser capazes de fazer a descida e que depois, já cá em baixo, não cabiam em si de contentes pela conquista. “Se alguém tiver mais receio, um de nós faz a descida lado a lado com ela. Já aconteceu uma vez e a participante não só superou o medo, como ficou fã desta atividade e já fez mais canyonings connosco noutros rios”, diz João.
Refere que a DNA promove “proactivamente” rios locais, como esta Ribeira das Paredes (Mortágua), a Ribeira de Quelhas (Castanheira de Pera, Lousã), o Rio Frades (Arouca) e o Rio Teixeira (São João da Serra). “Depois, com grupos fechados, vamos a outros, como o Gerês ou Vila Real, onde temos o Rio Poio, que é o ex-libris da atividade em Portugal continental”.
As Catarinas são as primeiras a descer. São três: Catarina Santos (22), Catarina Silva (22) e Catarina Henriques (24). O elo homónimo é quebrado por Didiana Mariana (20). As quatro conheceram-se a fazer voluntariado em Moçambique. Costumam passar sempre dois meses de Verão em África, a dar aulas e organizar atividades de animação com crianças. Uma prática interrompida este ano, pela presente pandemia.
“Para quem nunca fez a atividade, este é um rio excelente para uma estreia, é divertido e muito bom para se vencerem medos”, refere João. “Posteriormente, podem regressar com mais caudal de água ou vão fazer um rio mais desafiante”.
O trabalho de equipa demonstrado pelo grupo de jovens, mais do que familiar, é intrínseco à atividade da DNA. Paralelamente ao turismo na natureza, a empresa especializou-se na organização de teambuildings para empresas.
“Uma grande fatia do nosso volume de negócios são eventos corporate”, afirma João. “Criámos teambuildings com identidade DNA, com um portefólio com 15 a 20 atividades interessantes e divertidas e, simultaneamente, centradas no trabalho de equipa, na resolução de conflitos, nas dinâmicas win win, tudo com uma linguagem que está alinhada com o que as organizações entendem”, assegura. “Após cinco anos em multinacionais, percebo bem os desafios do outro lado, o que querem, o que procuram, o que necessitam”.
Desde um assalto às muralhas de um castelo do século XII, com um exército de 130 funcionários liderados por um cavaleiro medieval e que, entre outras provas, terão de fazer rapel, escalada, slide e tirolesa, a equipas que têm de explorar zonas místicas da Serra da Lousã em busca de Druidas que os ajudem a conseguir a fórmula do elixir da juventude, há um pouco de tudo no portefólio da DNA.
“Independentemente de todo o imaginário e da construção das histórias, há sempre uma dinâmica personalizada consoante a empresa em questão. E o trabalho de equipa é sempre fulcral para obter resultados”, assegura.
Gonçalo é o último a descer. Desce “em dupla”, com a corda de 70 metros dobrada em dois, de forma a poder recuperá-la cá em baixo. “É por isso que é fundamental ter, no mínimo, o dobro do comprimento da corda em relação à altura da queda de água que vamos fazer”, explica o monitor.
Nesse preciso instante, surge Hugo Teixeira Francisco, sócio de João, na companhia do vlogger Marco Neiva, que está a fazer a N2 de bicicleta e tenta captar imagens dos interesses turísticos de todos os municípios que atravessa. Hoje é o dia de Mortágua e pretende captar algumas imagens de canyoning com recurso a drone. Hugo orquestrou esse encontro. É o responsável pelas relações públicas, marketing e comunicação geral da empresa.
João e Hugo conheceram-se no programa de aceleração Newton, organizado pelo Instituto Pedro Nunes. Hugo era sócio de outro operador turístico. Constataram que partilhavam visões e trabalhavam bem juntos. Começaram a delinear planos e estruturar ofertas. Em Janeiro de 2019, Hugo vendeu a sua participação na outra empresa, apertou a mão a João e lançaram-se num empreendimento conjunto, a Portugal Green Travel. “Sentimos a necessidade de evoluir para uma agência de viagens”, refere João. O “green” é, mais uma vez, alusivo à sustentabilidade. “Trabalhamos o território nacional maioritariamente para clientes estrangeiros, com uma vocação muito clara para experiências autênticas em territórios de baixa densidade”.
Foto DNA (Publituris Road Show, Aveiro) |
Entretanto, Hugo tornou-se também sócio da DNA. “Complementamo-nos muito bem, as coisas que ele faz bem não são a minha praia e vice-versa”, refere, sorridente. “Ele é economista, eu sou de Turismo, a coisa equilibra-se, por sermos diferentes trabalhamos muito bem juntos e estamos em plena sintonia em tudo o que é fundamental na gestão que fazemos”.
Foto DNA (via ferrata, Oleiros) |
Hugo também vivia um quotidiano bem diferente do que este. Passou por hotéis, agências de viagens, camaras municipais, foi até consultor de comunicação para empresas norte-americanas em Angola e esteve nove anos ligado à Ryanair. “Estava habituado a estruturas multinacionais gigantes e agora toda a gente faz de tudo um pouco. Mas gostamos muito do que fazemos, todos os dias vou trabalhar, mas não é trabalho. Por isso, de vez em quando, até temos alguma dificuldade em desligar. Temos muito orgulho nas marcas que criamos e estamos a ver crescer e, acima de tudo, que fazem a diferença no panorama regional e nacional da oferta turística”.