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9 de outubro de 2020

Felicidade movida a energia solar




São 11 da manhã quando subo a bordo. O céu está coberto de nuvens, há um vento ligeiro que sopra de sudoeste, mas a água está calma. Não há ondas, não estamos no mar, a única ondulação é um ligeiro borbulhar na água quando é sulcada pelo casco vermelho do Gaivinha, que significa “andorinha-do-mar” em latim. É também o único som. O barco, movido a energia solar, é incrivelmente silencioso e enquanto navega na Ria de Aveiro propicia uma esplêndida sensação de paz e relaxamento que se apodera de todos os sentidos. Trata-se de uma experiência turística. Uma experiência que nasceu de uma promessa entre um homem e uma mulher.




Aconteceu em 2015. Estevão Castro fez um acordo em jeito de promessa com Sandra Oliveira. “Quando tivermos 55 anos vamos montar um negócio só nosso, algo ligado à Ria de Aveiro. A nossa Ria de Aveiro”. Ela contemplou-o e sorriu. “Sim, agrada-me a ideia de terminar os dias com os pés na água”.
E a vida de ambos estava ligada à água. Quando era pequeno e passava a Ponte da Praia da Barra, Estevão olhava, fascinado, para as ilhas na ria. “Como é que se vai para ali? Eu quero ir para ali!”. Os anos passaram e o seu fascínio pela ria transbordou para a cumplicidade. “Transmite-me calma, paz interior. É o meu espaço de reflexão”.



Já Sandra, trabalhou como concierge de um spa num navio cruzeiro e navegou pelo mundo. Nova Zelândia, Polinésia Francesa, Havai, Taiti, Bora Bora, Caraíbas, Báltico. Em 2015, resolveu baixar, pela derradeira vez, a ancora num oceano. “Estava na hora de ter outra estabilidade, juntar os trapinhos e mudar de vida”.




Uma coincidência veio antecipar o plano. No Outono de 2019, estavam ambos numa animada festa de aniversário quando surgiu em conversa “aquele barquinho giro” que costumava “fazer tours na ria”. Interrogaram-se sobre o que lhe tinha acontecido. “Nunca mais o vi”, repetiram todos. Quase todos. Um dos convidados conhecia-lhe o destino. “Os proprietários desistiram desse negócio, o barco está guardado num pavilhão junto à ria”.




Nessa mesma noite, já em casa, o casal voltou a abordar o assunto. “E se ficássemos nós com ele?”. Faltavam ainda 10 anos para a meta empreendedora que tinham estabelecido (ele tinha 45 e ela 42), mas a ideia agradava-lhes. Obtiveram o contacto dos proprietários e marcaram uma reunião. “Aquilo parecia ter imenso potencial, acima de tudo, queríamos saber o que tinha corrido mal”, refere Estevão.




A resposta que obteve foi elucidativa: “Isto é um projeto que tem de ser explorado pelos próprios, se não dominares de A a Z todas as facetas do negócio e se não estiveres tu à frente dele, não vai funcionar”, disseram-lhe. Não era um obstáculo. “A Sandra tinha disponibilidade total e era a pessoa indicada para abraçar este projeto”. Chegaram rapidamente a um acordo. Poucos tempo depois, o Gaivinha era deles.




Não iam criaram um negócio de raiz, como tinham idealizado, mas iam aproveitaram um negócio que tinha encalhado e que eles acreditavam conseguir levar a bom porto.




No início do ano, elaboraram um minucioso plano de negócios; estimaram o número diário de viagens, a lotação do barco, o preço médio por pessoa, entre muitas outras contas. A confiança no potencial do empreendimento saiu ainda mais reforçada. “Só se entretanto houver uma terceira guerra mundial é que isto não vai funcionar”, disse, na altura, Estevão a Sandra.



E assim (res)surgia o Sterna – nome científico da andorinha-do-mar, sterna hirundo – um empreendimento de turismo náutico sustentável, com um barco integralmente movido a energia solar que dá a conhecer “todos os segredos e encantos da Ria de Aveiro”.




No dia 16 de Março de 2020 efetuaram a primeira saída. Embarcaram uma estudante brasileira e um casal aveirense. “Foi um pouco estranho”, confessa Estevão. “A ideia inicial era deixá-los desfrutar da beleza da paisagem e da tranquilidade. No entanto, instalou-se um silêncio um pouco constrangedor”. Foi quando perceberam que tinham de introduzir storytelling na atividade. “Um valor acrescentado de forma às pessoas saírem daqui com algo interessante para contar, sobre a ria, as marinhas, os canais, as aves ou os achados arqueológicos nestas águas”.




Decidiram efetuar uma pesquisa geral sobre o local, sem saber que, infelizmente, iriam ter imenso tempo para a aprofundar. 48 Horas depois, era decretado estado de emergência com a pandemia do Covid-19.




Entretanto, as nuvens começaram a abrir e já se vislumbram algumas manchas de azul no céu. Vamos percorrendo tranquilamente os canais da Ria, que é muito mais extensa do que imaginamos. Ao todo, tem 45 quilómetros de extensão e 11 de largura, recheados de beleza natural e biodiversidade. À medida que navegamos vamos deparando com inúmeras ramificações que se desdobram em possibilidades de descoberta e exploração. “Os canais da ria eram as verdadeiras estradas da época pois abrangiam vários concelhos do distrito de Aveiro e Coimbra” refere Sandra.






É percetível na sua voz o entusiasmo do regresso à sua atividade. Apesar de todos os constrangimentos que o período de confinamento lhe trouxe, optou por rentabilizar esse tempo. “Aproveitámos para redefinir a nossa estratégia comercial, atualizámos o nosso storytelling com muita pesquisa e a escutar imensas estórias antigas sobre a ria e até fizemos formações e consultoria com a Biosphere Portugal”. Foi definido também um meticuloso protocolo de segurança e higienização, ao qual assistimos antes de embarcar, com desinfeção do barco e dos coletes salva-vidas e medição da temperatura antes de subir a bordo.




“À nossa direita, temos mais uma das muitas marinhas de antigamente, a Fidalga do Norte”, informa Sandra. Durante séculos, a produção de sal foi um fator de relevo na economia aveirense. Havia centenas de marinhas espalhadas pela ria, que extraiam o sal da água através da evaporação nas salinas. Eram rodeadas por muros arcaicos feitos com terra, lodo e madeira e tinham pequenas habitações de apoio que eram apelidadas de palheiros. Hoje, há menos de uma dezena ainda em atividade e muitos, muitos vestígios desse passado áureo. Vamos navegando entre eles, muros derrubados, palheiros em ruínas e ancoradouros toscos, há anos órfãos de embarcações.




O capitão – ou skiper – vira o leme à direita, na direção do Esteiro do Gramato. “Sabes porque tem esse nome, não sabes?”, questiona Sandra a um dos marujos. “Por causa da Gramata Branca”, responde uma voz fininha, pausada, alegre. É o Vasquinho, o seu filho de quatro anos que a acompanha na proa do Gaivinha. Na popa, Estevão está ao leme, junto com o filho mais velho, Rodrigo (13). Sandra é quem está a tempo inteiro no negócio (Estevão tem outro emprego) mas é comum a família fazer-lhe companhia, sempre que possível. Explica-nos que a gramata branca é uma das plantas comestíveis da ria e que existe em abundância naquele canal. “A outra é a salicórnia. São ligeiramente salgadas e ricas em antioxidantes naturais”.







Após termos cruzado alguns canais, Estevão debruça o olhar para o ecrã da sonda, que lhe revela que estamos numa zona profunda da ria. “É aqui”, afirma, captando a atenção de todos. “Algures por aqui está afundado um galeão do século XVI”. Conta-nos que foi descoberto por dois mergulhadores (2009) e que se encontra parcialmente enterrado no lodo.



É apenas um dos vários naufrágios na ria. “O canal de onde partimos, onde é o posto náutico, era, no século XV, um movimentado posto comercial”. Ao longo dos anos foram recuperados nestas águas inúmeros artefactos arqueológicos. Em 1994, enquanto revolvia a areia em busca de ameijoas, um mergulhador encontrou um astrolábios do tempo dos descobrimentos. “Está hoje no Museu da Marinha”. Ainda na década de 90, entre os destroços de um mercantel, foram recuperadas imensas cerâmicas do século XV. “E devem haver muitos mais desses vestígios do passado por descobrir”.




À distância, vamos avistando algumas silhuetas do que parecem ser casas no meio da ria. “São as ilhas”, esclarece Sandra. Refere-se a terrenos de antigas marinhas, rodeados por água e onde ainda se erguem as antigas edificações.




Algumas dessas casas estão abandonadas e em ruínas, outras têm passado de geração em geração e foram sendo recuperadas. Algumas são habitadas. À medida que nos aproximamos, vislumbramos os seus detalhes rústicos, os ancoradouros de madeira, as estruturas pitorescas, as paredes cobertas de azulejos coloridos. Algumas têm jardins, outras têm lanchas submersas na vegetação. E há alpendres de onde, imaginamos, se testemunham entardeceres únicos.







“Uma delas está à venda”, afirma Estevão. “Da última vez que vi, custava três milhões e meio de euros”. Está a falar da Ilha do Monte Farinha que, para além das salinas, chegou a ter uma quinta de produção de agro-pecuária. “Tinham vacas, cavalos e um rebanho enorme. Os animais ficavam lá durante a Primavera e o Verão e eram recolhidos no Outono. No entanto, uma inundação grande destruiu tudo. Está ao abandono desde então”. Dirige o braço para o lado esquerdo do convés. “É possível vê-la lá ao fundo”. Retiro a teleobjetiva do saco e fotografo-a na aproximação máxima. Surpreendo-me ao ver a imagem. A estrutura edificada é bem maior do que tinha imaginado. “O proprietário chegou a tê-la à venda por oito milhões”, afirma Estevão, sorridente.




Continuamos a navegar e a usufruir da serenidade, que se mantém incólume, mesmo na zona onde a água doce se reúne com a do mar, no canal do Rio Novo do Príncipe. Entretanto, o sol já abriu e começou a alimentar as sete baterias do Gaivinha. “Nos dias de sol não temos qualquer problema de autonomia”, diz o skiper, acrescentando que a embarcação está equipada com seis painéis solares. “Com lusco-fusco, temos entre seis a oito horas de navegação”.







Subitamente, faz uma pausa e aponta para um braço de terra onde se ergue um palheiro degradado, rodeado por vegetação. Para lá do capim, um bando de flamingos deambula tranquilamente pelo leito raso da ria, alheio à nossa presença.







“O facto do nosso barco ser tão silencioso, permite este tipo de encontros”, afirma Estevão, revelando uma das principais atrações da tour: o birdwatching. “Uma das nossas clientes foi surpreendida pela presença de uma águia pesqueira e um bando de garças reais; não estava à espera, chorou de alegria”, conta Sandra. “O mais engraçado é que ela era de Aveiro”, complementa Estevão. “Recebemos muitos clientes da região que não conhecem bem a ria e a grande diversidade de aves que aqui existe”. Destaca os flamingos, as cegonhas, as garças-brancas, as águias-pesqueiras, os maçaricos-reais, as narcejas, os borrelos, as garças reais e, claro, as gaivinhas. “As pessoas ficam verdadeiramente surpreendidas”.




E, de facto, é uma sensação que perdura. Já no regresso, após uma manhã inteira na ria, continuo surpreendido com a leveza com que o Gaivinha parece flutuar na água. Percebo a hashtag que Sandra tentas vezes usa a acompanhar as publicações da atividade nas suas redes sociais: # o silêncio é o novo luxo. A navegação silenciosa é tão relaxante que tudo o resto parece um bónus. E não faltam bónus. Para os clientes –que quando menos esperam são brindados com espumante, fruta e doces regionais – e para a família que decidiu embarcar neste projeto de vida.

Observo-os. Sandra está sentada na proa, é a primeira a receber a brisa matinal; Estevão sorri por trás dos óculos escuros com que contempla o horizonte; o filho mais velho está compenetrado junto ao leme, um dia será um skiper; o mais novo está sempre a explorar os recantos do barco, a molhar as mãos na ria, a espreitar as aves ou a procurar o reconfortante colo da mãe. Alguns instantes depois, noto que a minha observação estava a ser observada. A empreendedora sorri e diz: “É o melhor escritório do mundo, não é?”.