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21 de janeiro de 2019

Turismo Criativo Faz Renascer Arte do Mosaico nas Ruínas de Conimbriga


Na antiguidade romana, as casas das famílias mais abastadas tinham sempre um peristilo. Um átrio rodeado de colunas onde o anfitrião recebia os convidados mais importantes. Nas ruínas de Conimbriga, em Condeixa-a-nova, há um peristilo. É lá que Humberto Figueiredo recebe os seus convidados. Hoje são 14. Alguns vieram do Sul do país, outros do Norte da Península Ibérica, houve até que atravessasse o Atlântico para estar aqui.
Não estão cá pelo cenário idílico, nem pela brisa morna de verão que todas as tardes inunda este espaço. Estão cá para fazer turismo criativo.



I - Mosaico de atividades

“Já tiveram oportunidade de ver o mosaico antigo, agora podem experimentar o mosaico moderno, à medida da vossa imaginação”, diz Humberto ao grupo, enquanto distribui um conjunto de tabuleiros de madeira. De seguida, aponta para uma mesa, onde estão imensas caixas de plástico cheias de tesselas coloridas, pequenos fragmentos de pedra cortados e moldados com cinzel e martelo. É a junção dessas peças – e as suas diversas cores, texturas e formatos – que cria o efeito visual característico desta arte decorativa milenar da antiguidade grego-romana.
Primeiro timidamente, depois naturalmente, os turistas dirigem-se à mesa para recolher as peças com que vão dar aso às suas criações.



II – Artesãos Alentejanos

A família Vaz viajou de Portalegre até Condeixa-a-Nova. Jorge e Maria Carmen e os seus filhos, Miguel (12) e Irene (7), já estão familiarizados com antigas cidades romanas. Têm uma na sua região: Ammaia, fundada em finais do século I A.C. e situada no Parque Natural da Serra de São Mamede. Desta vez, decidiram vir conhecer a maior do país, Conimbriga. “Ficámos fascinados com estas ruínas”, afirma Jorge, salientando a importância de “continuar a escavar”, pois acha que “há imenso ainda por descobrir”. Atento à sugestão, Humberto acrescenta: “Estima-se que Conimbriga só esteja 17% escavada”. O ar de espanto é geral. “Imaginem as maravilhas que estão por descobrir”, exclama  o pequeno Miguel. Está a trabalhar num azulejo onde desenhou a sua inicial a amarelo. A irmã, ao seu lado, diverte-se a “conjugar cores”. “Gosto muito de pintar, fazer desenhos e conjugar cores”, afirma, timidamente. Os pais sorriem e destacam o “interesse” da atividade. “Sobretudo, permite-nos passar tempo de qualidade com os nossos filhos”, conclui Jorge.



III – Mosaico de iniciativas

Humberto é o mentor da iniciativa MosaicoLab, sedeada no Museu de Conimbriga e que desenvolve uma série de atividades de turismo criativo alicerçadas no património do mosaico romano presente nas ruínas da cidade romana de Conímbriga (Condeixa-a-Nova), na Villa Romana do Rabaçal (Penela) e no Complexo Monumental de Santiago da Guarda (Ansião).


Tudo começou em 2017, com um desafio da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC). “Queriam dinamizar este território”. Um inveterado apaixonado pela arte e pelo património, Humberto aceitou o repto. Nasceu em Coimbra e estudou Belas Artes no Porto e em Madrid, onde fez um doutoramento na área. Após alguns anos a lecionar na Invicta, regressou à eterna cidade dos estudantes, onde se tornou investigador no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade. Estava a preparar um pós-doutoramento, quando foi desafiado. Juntamente com uma equipa multidisciplinar – que integra Virgílio Correia, director do Museu de Conimbriga, Jorge Cardoso, professor da Faculdade de Engenharia Informática e Pedro Sales, responsável pelo restauro e conservação do mosaico no museu – idealizou o Mosaico Lab, que se tornou um projecto piloto do Creatour, projecto nacional de investigação que visa contribuir para o desenvolvimento de turismo criativo, sustentável e interactivo em cidades de pequena dimensão e áreas rurais de Portugal.
“Tem que ser o turismo criativo a estimular esta região, não um turismo passivo, que apenas visita, mas um turismo que tenta compreender o território, com envolvência e que traga desenvolvimento”, afirma Humberto.


Nesse mesmo ano, em Setembro, o MosaicoLab organizou as Jornadas Europeias do Património, com o apoio do município de Ansião e a Escola de Arte e Desenho de Mérida. “A única na Península Ibérica que tem um curso superior de mosaico”, refere Humberto.

Desenvolveram um programa de duas semanas dirigido às escolas de Ansião – desde primárias, secundárias a técnico-profissionais – e organizaram vários workshops de mosaico. Com sessões de manhã e tarde, o evento contou com a participação de mais de 500 crianças. “Foi cansativo mas óptimo”, afirma Humberto, salientando ter sido gratificante ver mosaicos “feitos por crianças de sete ou oito anos, completamente fascinadas e com uma atenção e cuidado incríveis”.


No workshop, foram usadas tesselas em material cerâmico. “É mais simples de pré-preparar. Numa hora e meia de atividade é impensável fazer mosaico no processo convencional”, explica Humberto. “No entanto, a coloração assemelha-se um bocado ao material pétreo das pedras de calcário”, complementa, aludindo à matéria-prima original que os romanos utilizavam nesta região.

Após concluírem os seus mosaicos, os pequenos participantes visitaram os mosaicos romanos de Santiago da Guarda. “Ai, tanto trabalho”, “Incrível”, foram algumas das expressões de estupefação que usaram, quando testemunhavam a complexidade dos mosaicos. “ Já tinham noção de todo o trabalho minucioso que está por trás dessas obras”, refere Humberto. “A atividade dá-lhes uma compreensão muito mais profunda do que era o mosaico romano na época”.



IV – Artesãos galegos

Marcos e Raul são dois irmãos de 12 e 10 anos. O mais novo enverga uma camisola azul e branca do Deportivo da Corunha, que denuncia a proveniência da família. Juntamente com os pais, Oscar e Rosa, vieram uma semana a Portugal, repartida por Coimbra, Aveiro e Porto. A visita a Conimbriga estava sublinhada nos seus planos. “Sou um apaixonado por ruínas, pela sua significância Histórica”, afirma Oscar. A paixão parece ter sido herdada pelo filho mais velho. Marcos adora História e mitologia. Tem um livro sobre mitos grego-romanos na sua mesa de cabeceira e são raras as noites em que não o folheia antes de dormir. As ruínas e os mosaicos de Conimbriga inspiraram-no. No seu mosaico, recriou o labirinto de Minotauro, com uma tessela castanha a representar o ser mitológico e várias amarelas a evocar as crianças que lhe eram oferecidas, de nove em nove anos, como tributo. Há ainda um peixe azul a aludir ao reino de Atlântida e um raio que representa Júpiter, “el rey de los dioses”.


Estão a seguir, meticulosamente, as instruções que Humberto deu no início da atividade. Dispor as peças na mesa primeiro e, depois de concluída a figura, passá-las para o tabuleiro, começando pelo centro e seguindo as linhas a lápis que Humberto traçou previamente. Deve ser inserido um “ponto generoso de cola” por baixo de cada tessela, antes de a pressionar durante alguns segundos ao tabuleiro. “Para que todo se queda muy bonito”, conclui o mentor da iniciativa, sorridente. “Vale”, respondem os irmãos, em uníssono.

O mais novo dirige-se à mesa do material e regressa com uma tessela cinzenta. “É para a nuvem”, afirma, extremamente concentrado. Está a recriar as paisagens da sua terra natal. Uma flor, montanhas com neve e chuva. Daí a cor da nuvem. “Na Galiza há muita chuva”, diz, enquanto fixa mais uma tessela. Sai um pouco de cola por baixo, que se espalha pelas peças vizinhas. Raul não se incomoda. “Não faz mal, é para parecer antigo, faz de conta que tem quatro anos”. A mãe solta uma gargalhada: “É fantástica a perceção do tempo dos mais novos, não é?”.



V – Mosaico de simbologias

A palavra “mosaico” vem do antigo grego “mousaikón”, que significa “obra das musas”. Um olhar sobre a sua complexidade visual denota a importância da inspiração na sua criação. No entanto, o seu propósito estava longe de ser meramente decorativo. “Eles falam dos mitos, deuses, lendas, narrativas, simbologia, espiritualidade”, exemplifica Humberto, sublinhando que o estudo do mosaico é um “veiculo” para nos “transportar para esse tempo” e perceber a sociedade e cultura romanas. “É um património vivo que continua a comunicar connosco. Diz-nos algo sobre a vida das pessoas, sobre o que pensavam no seu universo doméstico”. Usa como exemplo um dos marcos patrimoniais mais significativos de Conimbriga, a Casa dos Repuxos, uma habitação aristocrática que ainda preserva imensos mosaicos da época. “Porquê a escolha específica de cada um para cada divisão da casa?”, questiona Humberto, deixando no ar esse enigmático ponto de interrogação sobre a forma como os habitantes locais “valorizavam o seu património”. 


Um deles – talvez o que inspirou Marcos na sua visita às ruínas – tem uma explicação caricata. Num pátio, junto ao peristilo da casa, está a figura de um Minotauro. Um estudo da Universidade Carlos III de Madrid, datado de 2014, elucida que a representação de monstros mitológicos (entre outros seres assustadores) nos mosaicos exteriores tinha um significado supersticioso e visava manter o azar e sentimentos negativos como a inveja ou o mau-olhado, fora das casas. Curiosamente, essa casa ficou de fora da muralha defensiva da cidade, erguida para defender a povoação das invasões barbaras do século V. Conimbriga acabaria por ser destruída pelos Suevos em 468.



VI – Mosaico de percursos

Antes do declínio do império, a região fervilhava em atividade romana. Humberto destaca o “eixo de 25 quilómetros” com uma “paisagem cultural associada muito interessante” que, para além de Conimbriga, integra duas antigas vilas romanas: Rabaçal e Santiago da Guarda. Referindo-se à primeira, Humberto salienta o facto de ter sido servida por uma via romana e possuir uma planta octogonal, “muito pouco habitual na arquitetura romana”. Destaca ainda a beleza dos mosaicos e o facto de ter uma zona de termas que está presentemente a ser escavada. “Pela arquitetura e pelos mosaicos, percebe-se que os donos seriam pessoas com nível social e cultural significativo”.



Em Santiago da Guarda, há uma vila romana que ao longo dos séculos passou por uma "amalgama de períodos de construção”, tendo sido uma casa fortificada no período medieval e até um abrigo para peregrinos. “Ainda preserva um excelente exemplo da genialidade da engenharia romana”, afirma Humberto. Refere-se a um hipocausto, um sistema de aquecimento onde o ar ou água aquecida numa fornalha circulava sob o pavimento do edifício.

O objetivo do MosaicoLab é estabelecer uma rota turística com “visitas guiadas temáticas e criativas” neste território. Denominado “Rota do Mosaico – Conímbriga e Sicó”, o percurso inclui uma visita às referidas ruínas romanas e também às aldeias calcárias da região. “Estão quase a ficar abandonadas e, se recuperadas, têm imenso potencial turístico para gerar estadias”, sugere Humberto. “São aldeias com carácter vernacular, que dão claramente identidade a este território, onde se respira património”.


A rota permite, inclusivamente, visitar as antigas pedreiras de onde as equipas de mosaiquistas romanos da região extraiam pedra para os mosaicos. Um facto que Humberto pretende aproveitar para implementar mais uma experiência turística, com workshops de mosaico mais aprofundados, onde o participante pode ir à pedreira recolher a sua própria pedra, parti-la - conhecendo os métodos históricos, mas recorrendo a novos processos - e utilizá-la nos seus próprios mosaicos. “É algo direcionado a um público mais amante da arte, que gosta de entender o património e que vem para criar, para se envolver, para estar”, diz Humberto. Complementa: “Alguém que sai de sua casa com o intuito específico de ir para outra região ou país para aprender e vivenciar algo diferente”.


Essas experiências e essa potencialização patrimonial e territorial são valorizadas pela Creatour. “O MosaicoLab é um excelente exemplo da diversidade de possibilidades que podem ser catalisadas através de um especial foco na ‘ativação’ de recursos culturais locais, para o desenvolvimento local”, afirma Nancy Duxbury, Investigadora Responsável do projeto Creatour. “Operando em três locais, é sensível às diferentes situações e aspirações de cada um, tendo construído uma série de parcerias para desenvolver esta iniciativa com benefícios e potencialidades locais”, complementa.



A companhia de teatro da Chanca, uma aldeia perto do Rabaçal, é uma dessas parcerias. “Fazem teatro de máscara mudo, algo que vem dos tempos da Grécia antiga e dos romanos”, refere Humberto, sublinhando que essa e “várias outras atividades locais” podem integrar a Rota do Mosaico.



VII – Artesãos Canadianos

Aida saiu de Portugal quanto tinha dois anos. Esteve 22 na África do Sul, antes de rumar ao Canadá, onde passou os últimos 26. Tudo somado, dá 50, um número bonito para voltar ao país natal. As expectativas acumuladas ao longo das décadas não a defraudaram, antes pelo contrário. “Estou cá há uma semana e estou a adorar a visita”, afirma. Veio com o marido, Jorge (também com raízes lusas) e com a sobrinha, Verónica, tendo decidido dedicar a tarde a Conimbriga.

Está deslumbrada com as ruínas: “Adoro os mosaicos, a sua complexidade é admirável. E é impressionante como resistem ao tempo, tantos séculos”. Humberto partilhou alguns detalhes sobre o processo de conservação dos mesmos, antes de lhe apresentar a possibilidade de ela própria poder criar o seu mosaico, desafio que abraçou com um entusiasmo contagiante. “Não tenho um osso criativo no meu corpo, vamos ver o que sai daqui”.

Uma hora depois, afirma-se “surpreendida e orgulhosa” com o seu trabalho. Ergue-o e admira-o, simulando um gesto dramático, antes de olhar para o lado e vislumbrar um cão (um pug) no mosaico da sobrinha que, sorridente e envergonhada, nega essa inspiração. “Não estou a dizer que é mau. É um pug!”, reafirma Aida, enquanto encena um gesto reconfortante. Quando o som das gargalhadas se desvanece, revela que se inspirou em algo “característico” de Portugal, o sol. “Não queria fazer algo frio, invernal, como em Toronto, mas inspirado no calor maravilhoso deste país”. Há um breve silêncio, com olhares embebidos numa espécie de nostalgia antecipada, uma saudade que se instala antes sequer da partida. Dura três ou quatro segundos. Aida volta à carga. “Já a inspiração dela, foi um pug”.



VIII – Mosaico de desígnios

Para além do lado lúdico da atividade, o MosaicoLab ambiciona também apostar numa outra vertente, mais académica e dirigida aos artistas profissionais que pretendam aprofundar conhecimentos sobre essa arte ancestral. Com base nesse desígnio, a equipa pretende implementar um Festival do Mosaico. “Já esteve para acontecer, mas não houve um compromisso de fundos a tempo”, confidencia Humberto. “Já tínhamos duas mestres de mosaico italianas, que vinham desenvolver dois workshops e um seminário”, revela, deixando no ar a possibilidade. Talvez seja a próxima tessela deste MosaicoLab.