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2 de maio de 2018

O Tesouro Sensorial




– Então e agora? Qual delas?

Almeida finge que não ouviu a pergunta. Dissimuladamente, usa a ponta do manto para limpar a gota de suor que lhe escorre pela têmpora direita. É início de tarde e faz calor, talvez seja apenas transpiração; mas também pode denotar nervosismo e Almeida não pode passar essa mensagem ao grupo. Durante todo este percurso ele foi o líder. Não tinha essa função, nem sequer fez por isso, aconteceu naturalmente. Talvez os poucos cabelos grisalhos tenham inspirado respeito, as informações que partilhou ao longo do caminho tenham inspirado sapiência, a iniciativa que demonstrou perante cada obstáculo tenha inspirado audácia, as sugestões acertadas para todas as dúvidas tenham inspirado experiência. E, no entanto, agora não tinha uma resposta. Logo agora, onde uma decisão traçava a fronteira entre a vida e a morte. “Não”, pensou. Até ali, ele tinha sido o pilar que sustentou a coesão do grupo. Não o ia deixar desabar, logo ali, junto às muralhas do castelo, no culminar da missão. “Talvez ele não volte a perguntar”, sussurrou-lhe o pensamento.

– Almeida, o que fazemos? Qual delas? 


I

É cedo, o mapa está ainda ligeiramente húmido com o orvalho da madrugada. Em território desconhecido, o grupo tenta segui-lo à risca. A seta indica uma subida íngreme e o cansaço que sentem induz que só podem estar no rumo certo. No topo da rua há uma barraca com tábuas pregadas de forma tosca. Lá dentro, espera-os a primeira missão. Estão desarmados e, com a assistência de um armeiro, vão ter de construir as suas próprias espadas e escudos. Animados, metem as mãos à obra.
“Sabem porque é que existe este sulco na lâmina da espada?”, pergunta o Almeida. Todos abanam a cabeça. “Ao desferir um golpe no inimigo, a espada pode criar um efeito de sucção e ficar presa. Com este sulco, o sangue sai, o ar entra, e isso já não acontece”, informa. 
Devidamente equipado, o grupo segue pelas ruas da povoação desconhecida, em busca do local marcado com um círculo no mapa.



2

A Endlessenses organiza sessões de teambuilding desde 2014. Sempre com um tema e uma narrativa associadas. “Fazemos um jogo sensorial, onde se explora uma povoação, os seus usos e costumes, ao mesmo tempo que são despertados sentidos”, afirma Leonor Veloso, proprietária da empresa. Foi jornalista 22 anos, até que decidiu redigir o seu próprio caminho. Frequentou um curso de empreendedorismo, fez um plano de negócios e, juntamente com uma sócia, criou uma empresa especializada em “turismo de experiências e marketing sensorial”.


III

A viela é tão estreita que esconde o sol. O grupo aproveita a sombra para descansar e debater um enigma que tem para resolver. Alguns seguem a lógica, outros a criatividade. Um detalhe é consensual: têm de descobrir uma casa com portadas azuis, altas, mais altas do que um homem. 
Há alguns minutos, uma placa tornou o território menos desconhecido. Estão em Montemor. “Monte… mor”. Um dos elementos questiona-se sobre a origem do nome. “O Almeida saberá, certamente”, alguém sugere, meio a brincar. “Ó Almeida, porque é que esta terra tem este nome?”. 
Era suposto ser uma brincadeira, mas o veterano do grupo volta a surpreender. “Curiosamente, existe mesmo uma lenda engraçada que explica este topónimo”, afirma.
“Opá não acredito”, grita uma jovem. Com um sorriso roubado a Sean Connery, Almeida prossegue:
“Nesta região há duas povoações que tinham uma rivalidade intensa. Montemor e Maiorca. Eram rivais em tudo, até na altitude dos seus povoados. Para provocar os maiorquinos, os locais por vezes reuniam-se e gritavam: 'Monte...mor! Monte...mor!'. E os de Maiorca respondiam, de forma uníssona: 'Maior...cá! Maior...cá!' ”.



4

Após um ano de atividade, a Endlessenses atingiu um interregno. O fluxo turístico em Coimbra não estava a corresponder às expetativas. “Nessa altura, o turismo era muito centrado na Universidade”, recorda Leonor. Após um ano de sacrifício e investimento, instalou-se alguma descrença na sociedade. Descrença unilateral. Leonor não acatou a derrota e recusou-se a encerrar a empresa. Adquiriu as quotas da sócia, fez as malas e mudou-se para o Porto, onde o turismo estava a explodir. A Invicta tinha sido considerada o Melhor Destino Europeu e os números de turismo na cidade estavam a bater recordes. É lá que tem a sua atividade turística mais popular, “O Porto Mágico de Harry Potter”, um peddy paper pelos recantos encantados da Invicta com o tema do famoso feiticeiro. No entanto, Leonor manteve a aposta em Coimbra, mais centrada no teambuilding. “São muitas as empresas com departamentos na zona Norte e Sul que se reúnem aqui, na zona Centro”, afirma Leonor. “Nesse departamento, não posso dizer que tenho mais atividade no Porto do que em Coimbra, as empresas têm aderido muito”. A adesão duplicou a oferta. Na cidade já tem dois eventos de teambuilding: “Baixa-te a Coimbra: Uma aventura da Alta à Baixa!”, na zona histórica da cidade e “Em Conímbriga, sê Romano!”, nas ruínas de Conímbriga.
Na zona Centro, a Endlessenses já expandiu a sua atividade para Aveiro, Leiria, Lousã. E Montemor.



V

“Olha, só pode ser ali”. Finalmente, encontram as portadas azuis numa casa cor-de-laranja, com dois andares e telhado triangular. Batem à porta. Está destrancada e range ao ser afastada. Entram e descobrem que estão num teatro. No mapa há uma indicação para procurarem um baú escondido. Reviram algumas divisões até o encontrar, num canto, junto ao palco. Lá dentro, encontram vestes e instruções. Devem escolher dois elementos para interpretar o Rei D. Afonso IV e Inês de Castro e escrever um guião onde invertem a história, carimbando-a com um final feliz. “Um final feliz, o que querem dizer com isto?”, alguém pergunta. Todos os olhos estão postos no Almeida, que anda aos círculos no palco, enquanto pensa em voz alta. “Tenho quase a certeza que foi no castelo desta cidade que D. Afonso IV, que era o pai do Pedro, reuniu com o seu conselho e decretou a morte da Inês”. Uma voz feminina complementa de imediato:“Que giro, vamos ter de os reconciliar”. 
Após uma breve troca de ideias, são redigidos os diálogos. Dois dos elementos menos participativos do grupo são escolhidos para protagonizar a peça. Após um punhado de séculos, o perdão e a redenção chegam a Montemor.



6

“O desafio é sair 'fora da caixa' e deixarmos cair por terra as nossas inibições para libertarmos talentos escondidos e assumirmos um papel principal, explorando em equipa a nossa liberdade criativa”, afirma Leonor, relativamente à atividade que o grupo está a realizar em Montemor.
“Colocamos as pessoas em zonas de desconforto e ajudamos-las a lidar com isso. Invertemos papéis, os líderes vão para trás e os mais passivos são colocados a liderar, há provas com olhos vendados”, exemplifica. É comum serem as próprias empresas a requisitar jogos estratégicos específicos. “Por exemplo, há profissionais que desempenham muito bem as suas tarefas, mas não conseguem antecipar cenários e lidar com o improviso”, diz Leonor. “Nós trabalhamos isso.”
Muita da planificação é feita com recurso a psicólogos. “Trabalhar dinâmicas de grupo, a coesão do grupo, a comunicação, confiança mútua, formulação de objetivos, proatividade e rendimento sobre pressão” são alguns dos benefícios enunciados por Leonor relativos às estratégias de teambuiding da Endlessenses.
Há sempre vários monitores a acompanhar as atividades, atentos aos desempenhos e gerindo as situações em conformidade. “Sempre a meter pessoas fora da caixa”, refere Leonor, sorridente. Muitos são colaboradores pontuais, estagiários da Universidade de Coimbra, nas áreas do Turismo, Teatro e Multimédia.



VII

No topo da colina o grupo alcança, finalmente, as muralhas do castelo. Têm de ultrapassar uma prova antes de entrar. Uma prova sensorial. É preciso eleger um líder para a enfrentar. Apontam, de forma tão espontânea quanto unânime, para o Almeida, mas a escolha é recusada. É vendada uma jovem de vinte e poucos anos, e encaminhada para uma pequena clareira relvada. O resto do grupo segue-a, também às cegas. Seguindo a sua orientação, têm de adivinhar quais as ervas aromáticas que cheiram, as texturas de cereais plantados no Baixo Mondego que tocam. E as bebidas artesanais da época que bebem. Alegremente. A próxima missão poderá ser a última.



8

“Despertar a alma das cidades”. É um dos desígnios mais fortes da Endlessenses, assumido por Leonor. “Recriamos as memórias, vamos às lojas vintage, às ruas com História, às mercearias antigas”, refere. Sempre com storytelling, desafios e experiências sensoriais. Para explicar a significância da palavra que dá nome à sua empresa, Leonor cita António Damásio: “Os sentidos despertam emoções”. “E, se quisermos, os sentidos são intermináveis”, complementa. 
Nessas “viagens”, por vezes surgem contrariedades. Num evento no Parque da Cidade, no Porto, a equipa da Endlessenses estava a preparar uma atividade onde ia ser construída uma bandeira gigante. Esconderam o tecido, as tintas e pincéis debaixo de um arbusto e foram almoçar. Quando regressaram, tinha desaparecido tudo. Era Domingo, não dava para comprar a maior parte do material. Leonor transportou um rolo de tecido no carro e acabaram por decorar a bandeira com recurso a folhas das árvores e outras matérias-primas disponíveis no parque. “Ficou ainda mais gira assim”, assegura.
Usa sempre a criatividade e o “jogo de cintura” – desenvolvido nos anos de jornalismo – para lidar com os “imponderáveis”. E podem ser muitos. “Por vezes há clientes simpáticos, mas também há antipáticos, há pessoas com imenso espírito de iniciativa e outras desprovidas dele, há elementos extremamente competitivos, tal como há quem só queira beber cerveja”, refere. “Temos de saber lidar com todas as situações, dar sempre a volta por cima, transformar insatisfação em satisfação”. Leonor também usa essas ferramentas para criar surpresas, como descobrir que o alfarrabista que vai ser visitado tem uma velha grafonola que ainda funciona e arranjar forma que, a determinada altura, ela toque de forma “espontânea” o “La Marseillaise” para o grupo francês da tarde.
A valorização do património cultural é outro dos pontos diferenciadores da Endlessenses. “Gostamos de envolver as pessoas na cultura”, afirma Leonor. A imersão cultural e histórica surte efeitos gratificantes. “Por vezes, ouvimos pessoas que vivem numa cidade dizerem que nunca a tinham conhecido verdadeiramente”.



IX

Numa das torres do castelo, o grupo encontra um velho pergaminho com instruções. Alguém lê em voz alta: “Os primeiros habitantes de Montemor enterraram duas arcas dentro destas muralhas. A Arca da Fortuna e a Arca da Peste. Lenda ou facto histórico, certo é que ainda hoje as arcas permanecem escondidas, sem que ninguém ouse encontrá-las. É essa a vossa missão. Mas cuidado, em nenhuma circunstância abram a Arca da Peste”. Há entusiasmo e apreensão no ar. “O que será que existe na arca da fortuna?”, alguém questiona. “Segundo a lenda, ouro, muito ouro”, responde Almeida. Há olhos a brilhar e esse brilho parece ter ofuscado toda a apreensão. Almeida conta a história: “Na altura em que os mouros dominavam estas terras, vivia neste castelo um alcaide. Era viúvo e tinha uma única filha, que tentava proteger de tudo e todos. Quando a menina se tornou mulher, um dos cavaleiros do castelo apaixonou-se por ela. O alcaide proibiu a relação, o cavaleiro insistiu e, em vez da mão da filha, recebeu uma cela e uma pena de morte. Quando ela soube disto, suplicou ao pai por misericórdia. Ela nem sequer conhecia o cavaleiro, mas não queria ser responsável pela sua morte. Visitou-o em segredo nas masmorras e acabou por se apaixonar também por ele. Fugiram juntos. Mas não fugiram para muito longe e acabaram por ser capturados. Foi nesse momento que o alcaide descobriu que tinham casado, clandestinamente. Dividido entre sentimentos, resolveu deixar a decisão ao destino. Ofereceu ao casal duas arcas, uma cheia de ouro e outra com peste. A escolha deles seria um sinal. Ou estavam amaldiçoados ou abençoados. Mas o casal não escolheu nada, a não ser fugir, desta vez para mais longe. As arcas permaneceram intocadas numa das torres. Quando os cristãos conquistaram o castelo, não quiseram correr riscos e enterraram-nas. E permaneceram assim, até hoje”.



10

Quatro anos volvidos, Leonor não está arrependida de se ter aventurado nesta jornada empreendedora. Afirma ter deparado com inúmeros obstáculos, mas usou sempre a mesma escada para os ultrapassar. “Paixão”. Ainda a usa. “Vivo numa zona de desconforto constante, estou sempre a pensar em objetivos, novas metas, estratégias de angariação de clientes, faturação”, afirma, garantindo de seguida: “Mas a paixão compensa tudo isso!”.
Como ferramenta de superação, Leonor destaca ainda a aptidão de organização, a captação de bons parceiros e a capacidade de traçar bons planos. “A, B, C, D…, por aí fora”.
O negócio corre bem. “Temos propostas todas as semanas”, garante. Já não é a Endlessenses a ir, exclusivamente, em busca de clientes. A relação tornou-se bilateral e muitos já vão ao seu encontro, através das pesquisas online. “Temos um SEO bem otimizado”, refere.
No início, Leonor pensou em candidatar-se a fundos de apoio, contraindo créditos. A tentação era grande e cintilava com várias possibilidades, mas Leonor resistiu-lhe. “Foi a melhor coisa que fiz, senão estava hoje a pagar empréstimos, em vez de estar a ganhar”. Considera o investimento “bem rentabilizado”, com um “crescimento orgânico bastante aceitável”. Motivada, estabelece as novas metas: “Evoluir, expandir, solidificar e fidelizar o mercado”. Faz uma pausa, respira fundo e sorri. “E continuar a arriscar”.


XI

Almeida passa a mão pelo topo da arca e afasta a terra. Sente o padrão das gravuras, esculpidas em madeira antiga e tenta, em vão, discernir. As arcas são idênticas, não há um padrão identificável, um elemento distintivo. Contempla ambas, em silêncio. Passam-lhe mil coisas pela cabeça, mas sabe que tem de tomar a decisão que lhe foi incumbida. Faz uma pausa, respira fundo e sorri com o ruído da chave a destrancar a arca.