6 de fevereiro de 2020

Uma manhã (e duas vidas) em busca dos veados da Serra da Lousã


São oito horas da manhã quando começamos a subir a Serra da Lousã. Com um ou outro solavanco, o jipe vai superando os obstáculos de um estradão acidentado de terra, inacessível às viaturas comuns. Ao volante está Alfredo Mateus, criador da Veado Verde – Green Deer, empresa de animação turística que organiza passeios na natureza para observar veados e outras espécies selvagens no seu habitat natural. Há mais de 20 anos que explora a serra e observa a sua fauna. A experiência acumulada permite-lhe dar uma garantia aos clientes. “Vamos ver veados de certeza”.

Tenho a frase apontada e sublinhada no caderno. Não por incredulidade, mas porque me causa algum espanto. Até há um par de anos nem sequer sabia que havia veados na Serra da Lousã. São seres selvagens e a serra é enorme, prolonga-se por 4200 hectares e tem uma altitude máxima de 1202 metros. Não será demasiado arriscado fazer esta promessa? Alfredo sorri com a questão. Está habituado a ela. E habituado à resposta, raramente verbalizada, quase sempre visual. Após alguns instantes em silêncio, trava o jipe com cuidado e faz um aceno com a cabeça. Numa pequena clareira rodeada por árvores, dois veados deambulam tranquilamente em redor de um arbusto. Estamos há 10 minutos na serra e a promessa já está paga.


“Tenho de mudar de vida”. Há anos que o pensamento se repetia na mente do informático conimbricense. Sentia-se cada vez mais sufocado pelo stress e pelas horas trancado no escritório, na companhia de bytes e Kilobytes. Nessas alturas, rumava ao seu refúgio do costume, a Serra da Lousã. Após algumas horas de caminhada, passeio de mota ou jipe nessa imensa mancha verde, sentia-se sempre revigorado. O sentimento era partilhado pela mulher, Claudina Mateus, que geria o seu próprio centro de explicações. Com os anos, o pensamento foi-se transformando. De intenção, passou a promessa, cumprida em 2018. Despediu-se, decidiu que a serra seria o seu novo gabinete e inscreveu-se no programa de aceleração Tourism Creative Factory, realizado na Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra. “Foi aí que conseguimos definir e estruturar toda a nossa atividade”. Nessa Primavera, convidou um casal amigo para testar o conceito. A alegria com que viveram a experiência motivou-o. Afinou detalhes e no Verão recebia os primeiros clientes: Um casal búlgaro. “Foi relaxante, pedagógico e muito agradável”, escreveram no Tripadvisor. A primeira de muitas críticas (exclusivamente) positivas.


“Olha ali, olha ali, mais três!”, exclama Claudina, entusiasmada, à medida que três veados saem da densa vegetação e se juntam aos outros. Alfredo sorri. “Já antecipava que havia grande probabilidade de os encontrar neste local”. Aproximamos-nos, passo a passo, até que, num curioso movimento uníssono, os cinco animais erguem os focinhos na nossa direção. “Nunca sabemos quem observa quem, se nós a eles ou eles a nós”. O escrutínio dura alguns segundos até que, no preciso instante em que trocava as objetivas da máquina fotográfica, os veados decidem voltar a mergulhar nas profundezas da serra. “Vamos ver mais”, assegura Alfredo, com uma palmada no meu ombro.


Prosseguimos viagem. Após uma longa subida, deparamos com uma árvore caída no trilho, vítima da tempestade Glória. À medida que o jipe contorna o obstáculo e entra no mato, um corço passa a correr mesmo à nossa frente. “Um duende da floresta”, diz Alfredo. “Esse é um dos nomes que as gentes da serra lhes dão”. A presença dos corços e veados nestas paragens remonta há séculos e está bem presente nas histórias que passam de geração em geração nas povoações da montanha. É uma espécie autóctone da região, que esteve extinta durante 200 anos. Em 1995 foi reintroduzida pelo Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro. Até 2004 reintroduziram 120 animais. “Hoje, há mais de três mil", afirma Alfredo, salientando tratar-se do “caso de maior sucesso de reintrodução de uma espécie na Europa".


“O corço é uma presença quase mística na serra”, refere Alfredo, referindo-se à alcunha. “É menos corpulento do que os veados, é mais esquivo, mais difícil de ver, esconde-se muito na floresta”. Explica também que estes animais têm uma forma peculiar de correr, “aos saltinhos”, e que muitas pessoas também lhes chamam “as cabras do monte”.


O relógio marca 8:44 e o altímetro 900 metros. “Estamos num dos pontos mais emblemáticos da serra”, afirma Alfredo, antes de desligar a ignição. Saímos do jipe e deparamos com uma ampla colina, com um rústico posto de observação de incêndios construído em madeira. Avistam-se duas aldeias de xisto alojadas nas encostas das montanhas, tal como o ponto mais alto da serra, Trevim, onde se situa o célebre (e amplamente fotografado) baloiço panorâmico. “Em dias limpos, conseguimos ver o mar daqui”.


O vento frio funde-se no sol quente da manhã e produz uma sensação aprazível. “Imagine se estivéssemos entre o fim do Verão e o princípio do Outono”, afirma Alfredo. “Nessa altura, isto é mágico!”. Não se refere à temperatura nem aos tons outonais. É nessa altura que ocorre a brama, o período reprodutivo dos veados, onde os machos escolhem locais descampados e tentam captar a atenção das fêmeas com vigorosos bramidos. “Eles elegem este sítio porque é um ponto elevado, onde o som se propaga com facilidade”. Nitidamente entusiasmado, Alfredo prossegue: “Imagine-se aqui ao amanhecer, com o sol a romper um manto de nuvens aos nossos pés, os tons rosas, azuis e amarelos no céu. E ouvimos bramidos um pouco por toda a serra. Um veado brame ali, outro responde um pouco mais ao fundo, do outro lado responde outro, é emocionante, um espetáculo imperdível da natureza”.
Nessa altura, tal como nas manhãs de Verão, o arranque de Coimbra é às 06:30, de forma a poder usufruir do nascer-do-sol na serra. “Eu sei que madrugar causa algum desconforto, mas depois de estar aqui, a magia destes momentos compensa tudo”, assegura.


Após alguns minutos a percorrer a estrada de terra que atravessa um bosque serrado, chegamos ao local onde nos aguarda uma das surpresas da tour. “Há várias”, frisa Alfredo. Junto a um carvalho enorme, está uma casa em ruínas. “Bem-vindo à Catraia da Ti Joaquina”. Uma casa completamente isolada na serra onde há cerca de 100 anos vivia uma senhora que acolhia os viajantes, dando-lhes abrigo e alimentação. “Na altura as pessoas viajavam a pé e estamos num cruzamento de trilhos que ligam várias povoações, como Castanheira de Pera, Lousã e Miranda do Corvo. Por vezes, eram apanhadas por tempestades e precisavam de um sítio para pernoitar, uma bebida quente, uma sopa.”, diz Alfredo. Claudina acrescenta: “As pessoas até acabavam por fazer um pouco de tudo aqui, os pastores tosquiavam as suas ovelhas, as pessoas trocavam produtos entre si; isto tornou-se um entreposto comercial”. Sorri e acrescenta: “Há até uma placa ali ao lado que identifica este local como o primeiro posto de turismo da Lousã”.
Estas ruínas ocultam dois acontecimentos caricatos. Um é relativo à própria Ti Joaquina e o outro envolve uma individualidade ligada a Coimbra. Ambas as histórias são para descobrir no passeio.


O jipe continua a galgar terreno pelos trilhos da serra. Num pequeno declive enlameado, Alfredo reduz a velocidade e deixa a viatura descair devagarinho. Faz um sinal para sairmos em silêncio. Estamos numa zona conhecida como o ‘Vale das Bétulas’. Após alguns metros a pé, direciona-nos o olhar para um pequeno pinhal, onde sete veados vasculham a vegetação em busca de alimento. Subitamente, erguem as cabeças, observam-nos por alguns segundos e regressam ao seu pequeno-almoço. “Devem ter concluído que não somos uma ameaça”, refiro. Alfredo sorri e responde: “Já tinham concluído isso há muito tempo”. Perante o meu ar intrigado, acrescenta: “Há um velho ditado índio que diz: ‘A águia vê, o urso cheira, o veado ouve’. Eles têm um sentido de audição muito apurado, muito antes de os conseguirmos ver, já estão alertados para a nossa presença”.


De regresso ao jipe, questiono Alfredo sobre os hábitos alimentares destes animais. “É simples, comem tudo!”, afirma, perentório. “Até flores das giestas já os vi comer. No tempo da fruta, descem às aldeias mais próximas e ‘assaltam’ os pomares. No resto do ano, ‘assaltam’ as hortas e os jardins. Só não gostam de eucalipto”.


Os passeios da Veado Verde são também complementados por visitas às Aldeias do Xisto, incluindo aldeias em ruínas, como Cadaval Cimeiro. É nesta última que estamos, absortos pelo silêncio e por paredes de granito que há muito deixaram de abrigar vidas. No entanto, uma vez por ano, a vida regressa à aldeia. “Os antigos habitantes e os seus descendentes continuam a celebrar a festa anual da aldeia junto à sua capela”, diz Alfredo. “Todas estas atividades na serra fazem parte da informação histórico-cultural que damos aos nossos clientes nos passeios mas, sempre que possível, associamos-nos a estas festividades e organizamos passeios que as incluam”, Acrescenta. Dá alguns exemplos: A Alambicada na Aigra Velha, o Encontro dos Povos Serranos no St.António da Neve ou o Carnaval Serrano na Aigra Nova.


A meio da manhã, “é altura de um chá”. Alfredo revela que vamos a uma aldeia de xisto que também já esteve ao abandono, tendo sido recentemente recuperada: Gondramaz. A caminho, encontra uma cara familiar. “Olha o senhor Mário”. Desce o vidro e o rosto bonacheirão projeta-se para dentro do jipe. “Vamos a minha casa beber uma ginja”. Antes de alguém conseguir esboçar uma resposta, acrescenta: “É ginja de categoria, até levanta mortos!”.
“Tem de ficar para a próxima, senhor Mário”, diz Alfredo. “Vamos ao Mountain Whisper, apareça lá”.
O jipe regressa à estrada, com a silhueta simpática a acenar no retrovisor. “Estas pessoas dão autenticidade ao passeio, são generosas e oferecem tudo o que têm. Os turistas adoram conhecê-las”.


Sentamos-nos nas mesas de madeira de castanheiro. O Mountain Whisper é mais do que um bar. Em 2014, um casal conimbricense/leiriense decidiu mudar-se para a Serra da Lousã. Margarida Amaral e André Beato recuperaram sete casas em ruínas e converteram-nas em unidades de alojamento. Hoje, é um audacioso empreendimento que reúne turismo rural com diversas experiências turísticas, como atividades em família, desportos de aventura, workshops e eventos culturais.

Foto: Mountain Whisper

“Estas aldeias apaixonam todos os turistas estrangeiros. Os brasileiros dizem que querem viver aqui”. Alfredo já trouxe 18 nacionalidades diferentes à serra. Durante um chá de cidreira apanhada no quintal, partilha alguns episódios engraçados. Os canadianos que dizem que a floresta da Lousã se assemelha imenso às da sua terra natal; os chineses que vivem a aventura eufóricos e adormecem sempre na viagem de regresso; a família israelita que lhe disse que o passeio tinha sido o ponto alto dos 15 dias de viagem por terras lusas. Os sotaques mudam, mas as reações e as emoções são muito similares. “As pessoas ficam espantadas quando descobrem que temos uma floresta destas, com tanta vida selvagem, tão próxima de uma cidade como Coimbra”.

Para além dos veados - “garantidos”- Alfredo revela que podem ainda acontecer “avistamentos bónus” de javalis, texugos, ginetas, esquilos. Ou raposas. “Para as raposas não é preciso ir muito longe”, afirma, com um sorriso matreiro. Tal como os veados visitam os quintais, há uma raposa que ganhou o hábito de vir ao jardim do estabelecimento, comer a comida do gato. Foi apelidada de Rapunzel e é uma atração entre os hóspedes da Mountain Whisper.

A "Rapunzel" / Foto: Mountain Whisper
O trilho serpenteia pela encosta da montanha, com o musgo a misturar-se no manto acastanhado de folhas caídas. Vamos a um dos locais secretos de Alfredo. “Um segredo escondido da serra”. Durante o percurso, avistamos um veado a alguns metros do caminho. A visão recorda Alfredo de um episódio caricato, com uma turista espanhola. “Veio pela visita às aldeias, estava encantada com elas, mas não acreditava que íamos ver veados: ‘Cervos no, no lo vamos a ver”. Instantes após a frase, um enorme veado macho saltou do mato, a poucos metros do jipe. “Deu um grito enorme, ficou histérica com entusiasmo”.


“Isto é a ‘varanda’!”, afirma Alfredo. Trata-se de um pequeno planalto que se alcança por um estreito carreiro de terra e pedras, escondido pela vegetação. “Somos os únicos a vir aqui”. O local permite contemplar um profundo vale e várias encostas das elevações desta serra. À distância, avistam-se três veados, um macho e duas fêmeas. Alfredo retira os binóculos da mochila. “Não é ele”. Refere-se ao ‘Golias’, um macho “corpulento e com hastes de sete pontas lindíssimas”, que costuma avistar com frequência neste e noutros pontos da serra. “Reconheço-o facilmente porque tem umas cicatrizes características no focinho. Tem um à-vontade incrível connosco, permite aproximações como mais nenhum veado permite; já me aconteceu estar tão perto dele que quase fui tentado a fazer-lhe uma festa”.

O "Golias" / Foto: Veado Verde
Questionado sobre a expressão “hastes de sete pontas”, Alfredo dirige-se a um pinheiro próximo. “Está a ver estas marcas no tronco? As hastes dos veados machos caem todos os anos e voltam a crescer no Inverno. Todos os anos, por norma, cresce uma ponta a mais, por isso é que se consegue saber mais ou menos a idade de um veado contando a ponta que as hastes têm. Convencionou-se chamar ‘veados de sete pontas’ aos mais velhos e maiores”. Após uma ligeira pausa, acrescenta: “Durante a brama eles roçam-nas nos troncos ásperos dos pinheiros, para deixar marcas territoriais e também para libertar a pele aveludada que acompanha o seu crescimento”.

Sentado na vegetação, arrumo as objetivas no saco da máquina fotográfica, enquanto observo Claudina e Alfredo à distância.
Vejo-os na sua varanda. De shemagh ao pescoço e com a brisa nos cabelos, lado a lado a usufruírem de mais um dia no seu novo quotidiano, mais uma quarta-feira no seu novo ofício.


Ainda no jipe, Alfredo falou dos desafios do empreendedorismo, esse “sonho bonito” na cabeça das pessoas, que requer imensa “coragem e dedicação” para materializar. “Fizemos rigorosamente tudo, desde estudo económico, marketing, desenvolvimento do website, folhetos, cartões, até alguma mecânica e preparação do jipe”. Essa polivalência dotou-os de “alguma independência” em relação a terceiros para concretizar tudo o que tinham idealizado. O tempo faz o resto. “Quando começamos a ver resultados desse esforço e desse empenho, sentimos-nos ainda mais felizes por ter tomado esta decisão”.

Aproximo-me, faço a derradeira questão. “Conseguem imaginar-se no capítulo anterior das vossas vidas?”. Ambos sorriem, olham um para o outro, com os rostos banhados de sol. Alfredo encarrega-se da resposta. “Não temos qualquer vontade em voltar. Este contacto com a serra, com as suas gentes, com a natureza, com a vida selvagem, tudo isso transmite-nos uma tranquilidade e uma paz de alma muito grande. É isso que valorizamos neste momento das nossas vidas”.


Na viagem de regresso, já com o alcatrão a substituir as estradas de montanha, é Alfredo que me observa. Os meus sorrisos quando revejo as fotografias; o meu caderno, onde planeava apontar os avistamentos dos veados e que acabou por ser abandonado no tablier, por rapidamente lhes ter perdido a conta; o meu semblante ensolarado. “É isso!”, afirma, entusiasmado. “É essa a maior satisfação. Ver no rosto dos nossos clientes que eles vão para casa de alma e coração cheios com tudo o que viram e sentiram nas horas que passaram connosco”.

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